domingo, 7 de novembro de 2010

CAPÍTULO X

Comportamento Reativo e Resistência: “o computador errou!”

Ouvimos muitas estórias ocorridas em repartições públicas que mais parecem anedotas. É o caso de funcionários que ao perceberem algum erro cometido por eles, falam para o cidadão irritado: “desculpe, foi um erro do computador”.
Temos dificuldade em aceitar nossos erros, pedir desculpas ou refletir antes de falar. Nossa natureza freqüentemente nos impede de reaprender através das falhas e dos descuidos.
Nos sentimos inferiorizados quando nossos filhos, jovens e crianças percebem e apontam nossos defeitos. Vivemos tão voltados para dentro de nós, que não percebemos que estamos sendo observados e investigados nas nossas palavras e ações.
Para dar uma idéia desse fato selecionamos textos produzidos por adolescentes e préadolescentes na faixa etária que vai dos 11 aos 16 anos. Esses textos são reais, mas não identificam seus autores. Eles cursavam a 6ª, 7ª e 8ª séries de uma escola de classe média. Era um trabalho dirigido para a figura do pai e propunha a opção por dois títulos: “Meu pai, um amigo” e “Meu pai, esse ausente”. Alguns alunos resistiram em produzir o texto, mas como valia pontos e era tarefa escolar, acabaram aceitando.
Sabemos, porém, que crianças e adolescentes não se sentem à vontade relatando os defeitos dos pais para outras pessoas. Tentam muitas vezes atenuar, disfarçar ou inverter seus sentimentos e conceitos próprios, para não se sentirem culpados ou por acreditarem que seus pais podem mudar algum dia. Acabam optando pelo que desejam que aconteça e não pelo que realmente observam. Essa tese ficou confirmada, pois, de noventa textos examinados, a metade fazia boas referências ao comportamento paterno; a outra metade sinalizava os defeitos, mas, logo em seguida, os desculpava, perdoava ou aceitava, pelo menos
aparentemente. Mesmo assim mostraremos os textos tal como foram escritos, sem qualquer interferência da nossa parte.
É de grande importância observar nestes textos os fatores que podem originar distorções no desenvolvimento da personalidade das crianças e adolescentes. Em cada bloco de textos colocamos propositadamente esses fatores em forma de título com letras maiúsculas.
Vamos a eles:

TRABALHO
1. Meu pai, esse ausente
Meu pai é um ausente, trabalha dia e noite. Quando ele chega em casa percebo seu esforço com a gente. Se tenho alguma dúvida em alguma coisa ele faz de tudo para me esclarecer, mesmo cansado. Mas na maioria das coisas que eu faço sinto sua ausência, um apertão por ele não poder comparecer ou, às vezes, me sinto culpada por isso. Mas sei que não é culpa minha nem dele, ele faz de tudo para comparecer e quer sempre o nosso bem.
Apesar do meu pai ser ausente, o amor e carinho que sinto quando penso nele, faz com que todas as vezes ele fique presente nas horas ausentes.
2. Meu pai, esse ausente.
Meu pai mora fora. Ele está lá por causa do seu emprego. Ele vai lá em casa de quinze em quinze dias. Quando chega em casa fica nervoso com as contas a pagar. Meu pai se preocupa mais com os danos materiais. Meu pai me confunde com o meu irmão. Ele se preocupa mais com meu irmão do que comigo.
A convivência do meu pai com a minha irmã não existe. Mas meu pai também tem algumas qualidades e gostaria que meu pai não fosse nervoso.
Ass: Anjo negro.

AGRESSÃO
1. Meu pai, um amigo?
Meu pai não é dos melhores, mas é meu pai e eu não posso fazer nada. Bom, o pai dos meus sonhos é um cara bem alto, bonito e super legal, que quem o conhecesse não iria se decepcionar. Se um dia minha mãe morrer eu acho que morreria junto, pois quem salva tudo o que acontece é ela. Os colegas que vão lá em casa morrem de medo do meu pai, já minha mãe eles queriam ter uma igual. Meu pai é daqueles que não compreendem nada e tudo o que a gente faz ele já vem batendo, nem quer saber o que aconteceu. O que importa e que ele me ama e que minha mãe é a melhor mãe do mundo.
2. Meu pai, um amigo?
Meu pai é um amigão, às vezes, fica ausente quer dizer, quando viaja, quando vai ao clube.
Meu pai é engraçado, mas quando fica de mau humor, sai de baixo - ele fica com uma cara de
morte.
Meu pai tem amor por duas coisas a família e o carro. Uma vez ele bateu o carro e eu, a minha
mãe e minha irmã estávamos dentro. A primeira coisa que ele fez foi ver o carro, depois
perguntou se estávamos bem. Isso não quer dizer desprezo, quer dizer que ele é meio
desligado.

Meu pai é um homem trabalhador, honesto e inteligente. Só tem uma coisa ele é pavio curto,
no sentido de não agüentar esperar.
Ele é muito especial para mim, pois é um bom pai. Eu agradeço a Deus por ter me dado um
pai tão bom, carinhoso e engraçado. Obrigado por ter me dado um pai amigo, quando muitos
não o tem.

AUSÊNCIA
1. Meu pai, um amigo?
O meu pai, ele é super amigo e carinhoso comigo. Ele é muito nervoso, mas tem um ótimo
senso de humor.
Meu pai não é muito presente em minha vida, porque ele trabalha fora e fica vários dias sem ir
em casa. Cada dia que ele chega é um alívio para a minha mãe e meus irmãos, que ficam
pensando o que poderia acontecer em sua viagem. Quando chega ele está exausto e logo
dorme.
Meu pai, eu o adoro do jeito que ele é e não gostaria que mudasse!
2. Nós concluímos que pai de verdade é:
Aquele que nos acorda com beijos e abraços, nos compreende, nos ajuda, busca nos entender
e ensina o que sabe. Este é o pai inexistente em nossas casas...
Mas não os culpamos por isto, pois com seu pouco tempo para a gente, consegue nos
conquistar com seus agrados.
3. Meu pai, um amigo?
Hoje, em nosso país, muitos filhos não se dão muito bem com os pais, pois brigam, discutem
e também os pais não ligam e nem pensam em conversar com os filhos. Mas também existem
pais que gostam de conversar, brincar, consolar nas horas de angústia, os filhos.
Meu pai é super legal e sempre quando está em casa nós conversamos, brincamos, enfim, vida
comum entre pai e filho. Ele procura ao máximo fazer-me sentir bem e tenho medo de
decepcioná-lo. Se isso acontecer eu acho que não terei cara de lhe pedir desculpas. Mas isso
nunca irá acontecer porque sempre o respeitarei e nunca deixarei de amá-lo.
Quando meu pai está ausente, rezo para chegar logo e que volte sempre com aquele rosto de
quem gosta, ama e que nunca deixará de amar seus filhos e sua esposa. Meu pai, um amigo.

TIMIDEZ
1. Meu pai, um amigo?
Adoro meu pai, me dá toda atenção, amor e carinho. Apesar das suas dificuldades, é um
grande amigo. É um pouco calado, sério, mas muito responsável.
Converso muito pouco com ele e o respeito bastante.
Gostaria que fosse mais alegre e que se abrisse mais com a família, acho que é mais uma
questão de tempo. Às vezes, acho que ele fica nervoso com qualquer coisinha, mas logo, logo,
se anima.
Sempre que precisamos dele, ele vem para resolver qualquer problema. A sua facilidade de
fazer amizades é incrível. Quando chega cansado do trabalho, respeitamos bastante e lhe
damos a maior atenção.
Gosto do meu pai, mesmo com seus problemas e suas dificuldades. E o amo bastante; prá
mim é o melhor pai do mundo!

ÁLCOOL
1. Meu pai, um amigo?
Um homem trabalhador, que sempre trabalhou para sustentar a família. Meu pai chama-se...
Gosta muito de mim, mas quando faço alguma coisa errada ele briga até! E quando ele perde
a paciência, sai de perto... Começa a bater até a hora em que eu me machuque.
Ele não gosta de nada desarrumado, por isso fala para não deixar nada desarrumado e quando
vê alguma coisa desarrumada, ele chama a pessoa que fez e manda ajeitar.
Meu pai quando bebe com os amigos dele, chega em casa e faz só bobagens, loucuras, briga
com a gente e fica com aquele jeito bêbado e pinguço. Pinguço é porque ele bebe muita pinga.
Fica bêbado também quando bebe uísque. Quando meu pai quer fazer alguma coisa, não tem
“Deus no Mundo” que segure. Se ele quer fazer ele faz mesmo.
Meu pai tem rosto barbudo e a cara de quem parece ser bravo. Uns defeitos que eu acho que
ele tem é quando ele fica bêbado e quando faz a gente comer coisas que a gente não gosta.
Meu pai deveria ser um pai mais humilde e bastante amigo da sua família, principalmente da
sua mulher e de seus herdeiros filhos.

2. Meu pai, um amigo?
Enquanto estou na escola ele está no trabalho e só chega de noite, mas procura saber de tudo
que acontece na minha vida. Eu o vejo na qualidade de ótimo pai, pois nunca bate para
consertar os erros, apenas utiliza o diálogo e acaba dando certo para mim e para ele.
Quando meu pai chega em casa, todos param de ver televisão e vão fazer o que estavam a
fazer, para dar uma força, pois ele não gosta muito da área que está trabalhando (área
comercial). Então contamos (eu e minha família) como foi o nosso dia e subimos (minha casa
é de dois andares), vamos todos conversar e ver TV com ele. No final ele fica feliz por nós.

Pai, que sempre corrige meus erros e me dá ordens, estes são seus pontos fracos:
- Teimosia
- Bebe e fica chato
- Se acha “demais”

Obs. Pode deixar, colega, lhe perdôo os seus pontos fracos.
Pai, te amo.
Quem prestou atenção para os textos apresentados, deve ter-se identificado com alguns
ou com vários, que podem representar algumas situações que ocorrem ou já ocorreram na sua
própria família. Não nos prolongaremos em comentários, mas vamos destacar mensagens
importantes que transbordam deles:
-Os pais não escapam à observação minuciosa dos filhos e funcionam como um
verdadeiro espelho onde, através dele, os filhos conseguem ver-se a si próprios e aos
pais.

- Desejam e reclamam a presença dos pais porque precisam dela como modelos para se
tornar adultos e sabem como melhorar esses modelos (quando reclamam dos defeitos)
propondo as mudanças.
- Julgam com precisão e perdoam com facilidade os defeitos observados.

Paternidade, Maternidade e Culpa
Pais e mães costumam sentir culpa em relação aos filhos. Mas nem sempre essa culpa
corresponde exatamente às suas dificuldades ou descuidos com eles. Seria pretensioso demais
imaginar que os filhos sofrem apenas a influência direta dos pais. E que os pais tem plena
consciência e responsabilidade pelo que fazem ou deixam de fazer por eles.
Dá para perceber, através dos textos escritos por crianças e adolescentes, que os pais
sofrem fortes pressões do meio social. O trabalho, as viagens, o “stress” produzido pelo tipo
de vida atual obrigam pais e mães a disputarem alucinadamente na maratona civilizada. Ás
vezes essa maratona visa apenas a sobrevivência, outras vezes é estimulada para alcançar
fortuna, prestígio ou poder. As miragens no deserto da civilização são múltiplas, são
proporcionais à ambição individual e continuam a atrair uma multidão de visionários.
Para os muito pobres, a sobrevivência determina cruelmente a sua ausência de casa e a
orfandade relativa dos filhos. Para os muito ricos e para os incansáveis maratonistas da classe
média, essa orfandade é camuflada pelo conforto material. Mas todos surtem os mesmos
efeitos no psiquismo das crianças e adolescentes abandonados nesse “mundo desenvolvido”.
Muitas vezes os pais não sabem explicar direito porque ficam nervosos, desatentos ou
punem os filhos desnecessariamente. Talvez ainda não tenham consciência exata das pressões
que sofrem e que lhes deixam descontrolados; talvez ainda ouçam fascinados o “canto da
sereia” civilizada que entoa canções que falam de riqueza, poder e glória. Às vezes, dizem:
“O que eu tenho ficará tudo para vocês”.
Vamos deixar as crianças e adolescentes falarem livremente quando dizem: “Eu
gostaria que meus pais não trabalhassem tanto. Não me interessa o que eles têm, me interessa
o que eles são; se tivermos mais atenção, carinho e diálogo, saberemos ganhar o nosso próprio
dinheiro na época certa”.
Eles estão certos: nenhuma babá, nenhuma escola, nenhum internato, nenhum
terapeuta é capaz de desempenhar, nem mesmo se aproximar das insubstituíveis funções dos
pais. Antigamente eram os internatos, hoje são as escolas, creches e instituições para crianças
e adolescentes que tentam suprir esses papéis. Nenhuma delas conseguiu até hoje, porque a
família não é uma instituição criada pelo homem. É uma instituição natural, sempre foi e
sempre será.
Muitos outros animais há milhares de anos, cumprem obrigatoriamente esse mesmo
ritual: geram, criam e protegem seus filhotes até que estejam preparados para voar, nadar ou
correr para a liberdade.
Quando nós, pais e mães, curados da embriaguez da opulência, da surdez dos apelos e
da mudez do diálogo, ficarmos menos cegos, surdos e mudos, conseguiremos baixar nosso
olhar e ver nossos filhos. Teremos certeza que eles, com a nossa presença provisória, saberão
como e para onde ir, sozinhos e acompanhados dos modelos que aprenderam.

Comportamento Reativo em Casa, na Escola e na Rua
Já vimos como se instala o comportamento reativo começando pelas sinalizações,
passando pelas pequenas alterações do comportamento e indo até as formas mais graves.
Com freqüência, algumas crianças e adolescentes, dão preferência a demonstrar suas
alterações de comportamento em casa, outros na escola e outros na rua. Alguns dentro de casa
são verdadeiros santos e quando se encontram fora do ambiente familiar se transformam
radicalmente a ponto de deixarem os pais com muita dúvida a respeito de suas façanhas.
Outros são considerados dentro de casa verdadeiros capetas e mudam totalmente quando estão
em contato com pessoas estranhas à família.
Esse mimetismo temporário de comportamento ou é aprendido dentro de casa ou é
criado pelo próprio indivíduo. A explicação para isso só vem à luz quando nos dispomos a
observá-lo durante algum tempo. Essas transformações mostram que alguma coisa já não está
funcionando bem. As sinalizações podem ser múltiplas e de várias intensidades. Para efeito
ilustrativo vamos dar alguns exemplos:

- Chorar com muita freqüência
- Brigas muito freqüentes entre irmãos
- Pequenas mentiras repetidas muitas vezes
- Gostar sempre de brincar sozinho
- Freqüente falta de apetite ou gula
- Medos excessivos: escuro, insetos, pessoas, etc.
- Tristeza e isolamento prolongados
- Destruição freqüente de objetos e agressões sem motivo aparente
- Pequeno furtos ou acúmulo egoísta de objetos
- Dificuldade de contatos com pais ou irmãos

É tão grande o número de sinalizações que não se tornaria prático prolongar a lista
deles.
É muito comum e pouco notada pelos pais uma sinalização representada pela
aplicação excessiva nos estudos. São os que, estimulados ou não pelos pais, vivem estudando
e querem sempre ser os primeiros da turma. Não brincam, não riem, não namoram e mais
parecem miniaturas de adultos. Os mais notados são os que matam as aulas, tiram notas
baixas e se tornam repetentes contumazes. Provocam muita ansiedade e irritação, mas acabam
ganhando mais atenção. Ambos apresentam alterações no seu desenvolvimento normal e
requerem cuidados.
Observamos que pequenas alterações introduzidas no ambiente familiar ou mudanças
no relacionamento dos pais com os filhos são capazes de provocar o desaparecimento desses
comportamentos. Outras vezes as reações adotadas pelos pais para mudar esses
comportamentos pode suprimi-los durante algum tempo para depois retorná-los com maior
intensidade e gravidade.
Punições ferozes ou chantagens bem arquitetadas são os erros mais comuns cometidos
por pais e educadores. Promessas de surras, cortes na mesada, ameaças de explosão e de
expulsão, supressão dos brinquedos e de viagens, são quase sempre barganhadas pela
mudança de comportamento. Nem sempre dão bons resultados porque não atingem o centro
gerador desses comportamentos e acabam estimulando a dissimulação, o disfarce e a
camuflagem. A situação interna (psíquica) continua intacta e pode reaparecer outras vezes.
Já vimos que são as mudanças internas do psiquismo que orientam o desenvolvimento
da personalidade e as que promovem o aparecimento e a qualidade dos comportamentos. Os
comportamentos são apenas os efeitos e os resultados visíveis dessas mudanças.
Quando falamos de pessoas corretas, íntegras, bondosas e compreensivas, estamos
falando da qualidade (caráter) do seu psiquismo, porque já conhecemos bem o seu
comportamento. O mesmo pode ocorrer com as pessoas desonestas, mesquinhas e avarentas
que, ao serem observadas no seu comportamento, refletem as características do seu
psiquismo.
Pode-se dizer, sem medo de errar, que psiquismo e comportamento andam sempre de
mãos dadas, são faces da mesma moeda ou são causa e efeito. Porém, um é visível e o outro
não.
A casa, a escola e a rua são extensão e continuidade da vida social e é nelas que o
comportamento atua. Alguns costumam avisar os filhos, quando uma visita vai chegar, para se
comportarem bem.
Precisamos causar boa impressão para os estranhos à família. O nosso comportamento
nesses casos deve seguir algumas regras para que a nossa imagem fique preservada e
respeitada. Em família, essas regras podem ser relaxadas, podemos mostrar o que somos uns
aos outros sem muito controle.
Podemos xingar, gritar, chorar, porque já convivemos e nos conhecemos melhor.
Nossos defeitos e fraquezas podem se manifestar mais à vontade. Enquanto dentro de casa
podemos peidar, arrotar e assoar o nariz com maior liberdade, diante dos outros precisamos
conter essas necessidades do corpo, pois elas representam para a nossa cultura, no mínimo,
falta de educação ou de respeito.
As visitas nem sempre são agradáveis porque representam o controle e a restrição da
nossa liberdade. Não sabemos mais nos comportar com espontaneidade. Transformamos
nossas palavras, sentimentos, pensamentos e gestos diante de estranhos e de visitas. Ás vezes
nossos filhos estranham o nosso comportamento delicado, sociável, bem humorado com as
visitas, porque conhecem o outro lado do nosso comportamento caseiro. Chamamos a isso de
“comportamento representado ou de comportamento social”.
Essas mudanças são percebidas por todos e significam um tributo pago à convivência
social. Somos como camaleões, mudamos de cor dependendo do local e da situação. Isso pode
ser aceito como normal, desde que não ultrapasse determinados limites e vire um hábito.

Comportamento Reativo e Namoro
Namoro é relação entre duas pessoas que começa com o comportamento representado.
É uma transição natural e obrigatória entre sair da família dos pais para caminhar na direção
da formação de nossa própria família, seja através do casamento convencional ou de qualquer
outra forma de convivência íntima.
Namorar não é uma decisão ou um ato consciente e sim um caminho psico-sócioafetivo
de todos os indivíduos para o cumprimento da evolução das sociedades. Na verdade
não escolhemos o candidato ou a candidata que queremos namorar, temos apenas a impressão
de que fazemos isso; somos tomados de surpresa quando encontramos aquela pessoa que, sem
que saibamos explicar, tornou-se mais importante do que as outras que também estavam do
nosso lado.
Sabemos intuitivamente que devemos abandonar a família dos pais enquanto os nossos
hormônios preparam o corpo para a reprodução. Sentimos cada vez mais forte a influência do
instinto sexual. O desejo de permanecer junto com a família (já bem conhecida) e o desejo
sexual (conhecer e conviver com o desconhecido), deixa a maioria dos adolescentes num
verdadeiro dilema. De um lado, o desejo sexual impulsionando para frente; de outro, o medo
de sair da família e assumir a liberdade e as obrigações sociais dos adultos.
Sabemos que as crianças estão concentradas no apego aos pais, em descobrir o mundo
ao redor de si e nas brincadeiras e correrias, enquanto o adolescente, cada vez mais
embriagado pelos hormônios e pelo corpo, paira nas fantasias do amor e do sexo. Os
adolescentes tentam desligar-se do mundo infantil recente, mas ainda não conseguem ter
consciência clara do mundo adulto. É uma fase de adaptação difícil onde o psiquismo sofre
uma verdadeira crise de mudanças.
O adolescente, através do comportamento representado, valoriza muito o seu corpo e a
sua imagem. Suas roupas e objetos facilitam a valorização da sua identidade e deve assumir
um comportamento cada vez mais parecido com o dos adultos sem, no entanto, copiá-lo.
O namoro exige um comportamento onde o parceiro veja no outro, não mais uma
criança. Essa convivência, que em alguns casos se completa no noivado, vai permitindo o
conhecimento mútuo. Além disso, é possível a cada parceiro conhecer melhor o interior da
família do outro; seria uma espécie de treinamento para saber com quem se está lidando e se
as diferenças entre um e outro, ou entre suas famílias, dá para mantê-los interessados. É o
caminho necessário e obrigatório para a vida adulta.
O adolescente deve ser apoiado e estimulado pela família para percorrer este caminho
da melhor forma possível para diminuir sua insegurança, sua timidez e a confusão que se
estabelece no psiquismo, tanto do jovem como da jovem, nessa fase da vida. É um verdadeiro
desastre para o futuro deles quando a família não lida bem com os anseios e comportamentos
desse período tão importante. O resultado aparece sempre nos casamentos apressados, na
gravidez precoce das jovens e nos graves conflitos que ocorrem nos primeiros anos do
casamento, onde as separações passam a ocorrer com maior freqüência.
Vários jovens se sentem verdadeiramente perseguidos pela família na fase do namoro
e por isso apressam o casamento para poder respirar livremente. Outros se escoram na fantasia
de que os pais, mesmo assustados com a gravidez, acabarão por aceitar o filho da filha e,
ambos juntos, permanecerão na família que lhes dará o sustento e o amor. Nesse caso teremos
um aborto social, ou seja, uma mulher ou um homem que não conseguiu fundar uma família e
cuidar dela.
Titios e titias, casamentos apressados, separações precoces, mães solteiras, todos
podem estar representando um abortamento das funções sociais para as quais os jovens devem
ser preparados.

Comportamento Reativo e Sexo
A primeira grande característica do sexo é ser individual. Cada indivíduo tem seu
sexo. A segunda, é ser diferenciado. Só há dois sexos: masculino e feminino.
A genética resumiu a apenas duas modalidades a probabilidade humana de ser sexual.
Curiosamente o homem e a mulher possuem cromossomos (elementos genéticos) de ambos os
sexos. Por que então que a natureza só permite o aparecimento de apenas uma característica
sexual em cada indivíduo? Por que foi negado ao ser humano e permitido à minhoca e ao
“escargot” serem hermafroditas? Por que pênis e vagina são molde e forma invertidos, um do
outro e se encaixam com perfeição? Temos que admitir que é muito difícil responder
satisfatoriamente essas perguntas. Nem mesmo é necessário respondê-las; seria o mesmo que
perguntar por que uma bola é redonda ou porque os peixes nadam e os pássaros voam.
Se fizermos uma pesquisa de opinião entre todos os homens e mulheres do planeta,
sobre quem gosta e quem não gosta de sexo, teremos sempre dois grupos diferentes: os que
gostam e assumem e os que gostam e negam.
Quais as razões que sustentam as palavras das pessoas que fazem propaganda antisexo.
Serão as mesmas pessoas que fizeram a mãe de Jesus ter um filho sem parto e ainda
continuar virgem? Ou serão aqueles que roubam o pão dos pobres e ainda pregam o controle
da natalidade? Ou as que negam emprego ou demitem as mulheres grávidas?
Vemos também que o dimorfismo sexual (diferença na forma) entre os dois sexos se
completa pelas diferenças anatômicas, hormonais e psicológicas. Parece que a natureza
propositadamente projetou duas criaturas inacabadas, isto é, feitas só pela metade; duas
bandas que isoladamente não tem sentido qualquer, mas, quando reunidas, se completam e se
integram ganhando sentido e função. Por essa razão é provável que homem e mulher foram
feitos um para o outro e, ambos, para o destino social. Que só se realizam plenamente como
indivíduos quando reunidos, propiciando o surgimento de novas vidas.
Somos levados a concluir que homem, mulher e filhos (a família) não são o resultado
de uma escolha, de uma mera opção individual. Talvez sejam atores de uma peça social que
não foi criada e nem pode ser dirigida por eles e, na qual, precisam atuar sempre sem terem
consciência exata do seu início e do seu final, encenando num palco sobre o qual muitos já
pisaram e outros muitos ainda pisarão. O sexo e a família não podem ser alterados na sua
substância porque, não são obra da engenharia humana.
O sexo é a isca mais atraente e mais gostosa que fisga homens e mulheres para,
igualmente, colocá-los no cesto familiar e despachá-los para o mercado social. Ninguém fisga
ninguém, ambos são fisgados e gostam de ser. Homens e mulheres são protagonistas na
atividade sexual, mas não são seus criadores. São, porém, os inventores da idéia que associa o
sexo ao pecado e à culpa.
Quem inventou a idéia de pecado? Algum esperto que pensou em tirar algum proveito
disso ou um fanático que resolveu se tornar inimigo do prazer, da família e da sociedade?
Por mais que nos esforcemos não conseguimos entender essa idéia. É uma idéia gerada
pela moralidade sexual da nossa sociedade ocidental, preconceituosa e cheia de contradições
ridículas. Homens e mulheres moralistas têm um comportamento hipócrita em relação a esse
assunto. Tornam-no misterioso e proibido para os filhos (repressão), mas quando reunidos
com amigos explodem em gargalhadas e se divertem ouvindo e contando anedotas eróticas.
Estão com a cabeça cheia de fantasias sexuais reprimidas, mas as suas bocas apregoam o
pecado e a castidade.
As “tentações da carne”, o “fogo do inferno” e o “juízo final” são frases feitas e
arquitetadas por uma civilização doente e carente de sexo. Organizações religiosas e grupos
de moralistas fazem a publicidade do sexo pela via do pecado e da culpa, mesmo sabendo
que o sexo é uma função natural e necessária. Cultuam “o espírito e condenam a carne”,
mantendo vivo o proselitismo do Bem e do Mal. Parece que têm o interesse em transferir o
“sexo sujo” para a cabeça das pessoas e manter os órgãos genitais como meros aparelhos de
urinar.
Manter a idéia de “sexo sujo” (pecado) deve ser importante para os que querem
preservar a subsistência desses grupos e dessas instituições. Homens e mulheres, escravos
dessa idéia, terão sempre uma vida sexual pobre e marginalizada e se manterão fervorosos
adeptos e leais colaboradores, dispostos a sustentar a bandeira da castração religiosa e o
brasão da falsa moralidade.
Nas doenças mentais e nas neuroses graves de crianças, adolescentes e adultos sempre
vemos esse brasão e essa bandeira tremulando no alto dessas cabeças doentes, como se
fossem as marcas subversivas à Ordem Natural.
Certa vez um fariseu sonhou com Deus e ele lhe disse: “Aqueles que subverterem a
Ordem Natural por Mim estabelecida, cairão em desgraça e serão amaldiçoados. Sofrerão de
impotência e frigidez, ficarão idiotas e serão conduzidos ao inferno da inveja do ódio e da
solidão.”
O famoso antropólogo Bronislau Malinowski, autor do livro “A Vida Sexual dos
Selvagens”, conta que os trobriandeses (povo primitivo do arquipélago melanésio) não
conheciam o homossexualismo até o dia em que os missionários europeus, escandalizados,
segregaram moças e rapazes em grupos separados. Entre eles não havia o estupro, nem crimes
sexuais. Eram raríssimas as separações entre os casados. Possuíam uma instituição especial (a
casa dos solteiros) onde moças e rapazes se namoravam e atuavam sexualmente para se
conhecerem melhor e poderem fazer uma boa escolha para o casamento. Não havia o
problema da gravidez precoce e as crianças, desde pequenas, não sofriam repressão sexual e
cresciam para se tornarem jovens livres e adultos saudáveis.
Entre os índios não aculturados da Amazônia presenciamos situações semelhantes.
Andam nus, mostrando naturalmente o corpo, e nos seus vocabulários não existe a palavra
“pecado”. Possuem rituais que cultuam com seriedade, e seguem com precisão os eventos
importantes como: o nascimento, a puberdade, a idade adulta, o casamento e a morte. Não
possuem um deus único e “Todo-Poderoso”. Estão sempre cercados de múltiplas entidades
espirituais que, como eles, têm defeitos e virtudes, bons e maus humores, brincam, fazem
desordens e copulam como os seres humanos.
Dizem alguns historiadores que a primeira invasão do Brasil pelos europeus foi feita
pelos portugueses no dia 22 de abril do ano de 1500. Quando eles aqui chegaram, ficaram
muito admirados com os costumes indígenas. Há informações de que outros europeus já
haviam antes visitados o litoral brasileiro antes de Cabral. Vamos reproduzir, a titulo de
ilustração, dois pequenos trechos de uma carta de Américo Vespúcio (La Lettera) que se
refere às novidades da nova terra e de seus habitantes:
“... que foi, que o rei Don Fernando de Castela tendo que mandar quatro
naves a descobrir novas terras para o ocidente, fui eleito por Sua Alteza que
eu fosse nessa frota para ajudar a descobrir. E partimos do porto de Cadiz no
dia 10 de Maio de 1497 e pegamos nosso caminho pelo grande golfo do mar
oceano, na qual viagem estivemos 18 meses e descobrimos muita terra firme
e infinitas ilhas, e grande parte delas habitadas, que os antigos escritores
delas não falam, creio porque delas não tiveram notícia; que se bem me
recordo, em algum li, que tinha que neste mar oceano, era mar sem gente.
...as suas riquezas são penas de pássaros de várias cores, ou rosário que
fazem de ossos de peixe, ou em pedras brancas, ou verdes, às quais se
metem pelas bochechas ou pelos lábios e orelhas; e de outras muitas coisas
que nós em coisa alguma as estimamos; não usam comércio, nem compram,
nem vendem. Em conclusão vivem e se contentam com aquilo que lhes dá a
natureza. As riquezas que nesta nossa Europa e noutras partes usamos, como
ouro, jóias, pérolas e outras divisas, não as têm em coisa alguma; e ainda
que nas suas terras as possuam, não trabalham para as ter, nem as estimam.
São liberais no dar, que por maravilha negam alguma coisa, e em
compensação liberais no pedir...”
Os navegadores europeus desconheciam naquela época a existência de milhões de
brasileiros que viviam felizes dentro de suas culturas. Ossadas humanas datadas de
aproximadamente onze mil anos e encontradas em Lagoa Santa (MG) e no Piauí, provam a
existência desses habitantes que ocupavam esse território sete mil anos antes do nascimento
de Cristo. Do ano de 1500 pare cá seus territórios continuam sendo invadidos e seus
verdadeiros donos massacrados para a exploração das riquezas da terra, como acontecia há
500 anos atrás. Pouca coisa mudou de lá para cá.
Os índios deveriam ser chamados de brasileiros e nós de nacionais, porque fundamos
uma nação em cima de outras que já existiam e que eram as originais donas da terra. Quando
eles se extinguirem perderemos a oportunidade de aprender outras formas de conviver
livremente sem dinheiro, sem pecados e sem políticos.
Voltemos à vida civilizada e ao modo como a sexualidade é tratada entre nós. São
muitos os pais e educadores que, ao invés de abrirem o jogo, ainda proíbem as brincadeiras
sexuais das crianças. Ensinam que colocar as mãos nos órgãos genitais não pode; que se
masturbar enfraquece o corpo, diminui a inteligência ou faz nascer cabelos nas palmas das
mãos. Sabemos atualmente que a masturbação, no período infantil e na adolescência, é
necessária ao desenvolvimento normal da sexualidade. Uma oportunidade de satisfazer o
instinto quando não é possível o ato real com um parceiro.
Pobres pais que sentem vergonha de contar para os filhos as suas experiências sexuais
da infância e da adolescência. Introduzir a educação sexual nas escolas? Que grande besteira!
Como pode dar certo, se muitos pais e educadores ainda sentem vergonha das suas idéias
atrasadas e preconceituosas a respeito de sexo? Crianças e jovens já têm conhecimento
intuitivo sobre sexualidade antes mesmo de nascerem. Quem ensinou os patos a nadar? Quem
ensinou as aves e as borboletas a voar? A escola?
Só precisamos não atrapalhar, não mentir, e falar livremente e sem constrangimentos
que o sexo, a vontade de comer, a vontade de urinar, defecar e dormir são coisas boas e
necessárias à vida de todos. Quanta complicação arranjamos para coisas tão simples!

Comportamento Reativo e Homossexualismo
Sempre houve muita polêmica em torno do fenômeno homossexual. Enquanto uns
falam de doença, outros falam em sem-vergonhice. Os homossexuais e muitos intelectuais
defendem a tese de “opção”, de escolha consciente. Inventou-se as expressões “variação
sexual” e “preferência sexual”. Essas expressões englobariam as tendências e experiências de
heterossexuais, bissexuais, transexuais, travestis, transformistas, “drag queens”, homossexuais
enrustidos e assumidos.
As muitas denominações propostas para estabelecer diferenças entre o heterossexual
convicto e as outras tendências incluem diferentes conotações embutidas nos termos: viado,
bicha, boneca, entendido, maricas, almofadinhas, fresco, gay, jeitoso, vinte e quatro, rapaz
alegre, delicado, filhinho da mamãe, pederasta, florzinha, mandrake, etc.
O tom jocoso e irônico é quase sempre agressivo, insulta e provoca a discriminação, o
desprezo e a aversão por esse tipo de posição sexual. A sociedade os trata como marginais e
ao mesmo tempo propala os seus direitos, sobretudo quando geram produção e circunstâncias
lucrativas. Há mesmo quem use a expressão “terceiro sexo” para instituir a homossexualidade
como função biopsicossocial, natural e legal.
O homossexualismo feminino, menos divulgado, curiosamente possui poucas
denominações através de termos como: lésbica, sapatão e machona. É menos comentado, mais
dissimulado e aceito socialmente. Quase sempre não é exibicionista, portanto se torna menos
visível. É interessante notar que no homossexualismo masculino o indivíduo ativo é
compreendido e o passivo criticado e humilhado. No feminino a situação é invertida;
enquanto o indivíduo ativo é discriminado e ridicularizado, o passivo quase não aparece e é
mais perdoado.
Nossa cultura machista é desconcertante e contraditória quando escolhe o homem
como figura mais importante da sociedade, ou seja, o homem que se comporta como mulher,
deve ser perseguido; mas a mulher que quer ser homem, embora discriminada - por querer
ocupar o lugar do homem - passa a ser menos perseguida por desejar alcançar a suposta
posição do “ser superior” - o homem.
Já tratamos anteriormente da necessidade de identificar-se inerente à natureza humana.
O homem precisa ser identificado nos seus atributos biológicos, psicológicos e sociológicos,
assim como a mulher também precisa. Esse patrulhamento severo e neurótico da sociedade
civilizada fixa e determina essa identidade pela prática sexual do indivíduo, genitalizando essa
identificação. O homossexual ativo continua sendo “homem” e o passivo perde essa condição.
A homossexual ativa perde sua identidade feminina, e a passiva a mantém preservada. Por
que?
Entre os povos primitivos esse fenômeno aparece raramente no comportamento das
pessoas, embora suas cargas genéticas possuam os mesmos cromossomos sexuais masculinos
e femininos que existem nas células dos civilizados. Por que, então, entre eles, o “problema”
da homossexualidade é difícil de ser encontrado? Como eles conseguem realizar esse
milagre?
Antes vamos ver como isso acontece com os animais irracionais. Muitos já
presenciaram animais do mesmo sexo tentando montar, isto é, praticar o ato sexual uns com
os outros. Normalmente eles não conseguem por não ser essa a meta e freqüência da função
preestabelecida pelos instintos naturais. E se conseguem, nada resulta a não ser o prazer
efêmero do ato, que na maioria das vezes não é aceito pelo parceiro. Os cães e as cadelas se
mordem em verdadeiras batalhas quando percebem que o parceiro é do mesmo sexo. Não
foram programados pela natureza para subverter aos instintos, porém, se o número de fêmeas
ou de machos se torna escasso, a freqüência desse comportamento homossexual tende a
aumentar. Se estiverem convivendo em situações antinaturais (prisão, fome, espancamentos,
isolamento prolongado) a persistência desse comportamento pode alterar ou perverter o
condicionamento instintivo.
Gatos que convivem com cães sem brigarem, ratos brancos que não sentem medo de
gatos ou cachorros, tigres e onças que convivem pacificamente com seus donos são situações
muito conhecidas e que mostram com clareza as profundas modificações que podem ocorrer
no comportamento instintivo dos animais.
O comportamento sexual no homem não é diferente, do ponto de vista de sua base
instintiva, do dos outros animais. Pode, da mesma forma, alterar-se e seguir outras tendências,
se estiver submetido a pressões antinaturais.
A sabedoria da engenharia natural deixou sempre uma margem de segurança para
redirecionar e preservar a espécie. Indivíduos masculinos e femininos possuem uma condição
genética, psicológica e sociológica mista, isto é, preparada para reorganizar as espécies em
casos de profundas alterações do equilíbrio ambiental.
Se determinado indivíduo masculino está tendente sempre a desempenhar seu papel
masculino isso não significa que ele, de vez em quando, não possa fazer ensaios ou
treinamentos de papéis femininos, mesmo inconscientemente ou em sonhos. Voltará ao papel
preferido quando perceber que esses ensaios não lhe agradam, que não combinam com o seu
desejo ou com sua posição social no grupo ao qual pertence.
Se não estiver submetido ou não tiver passado por situações antinaturais, escolherá
voltar sempre para o papel original. Isso fica demonstrado em situações nas quais muitos
homens se sentem compelidos a imitar mulheres em peças de teatro ou no Carnaval. Os que
assistem reagem freqüentemente da seguinte maneira:

=> Riem, achando muito engraçado
=> Dissimulam indiferença
=> Reagem com irritação criticando a cena
=> Se mostram interessados e imitam o ator

Todas essas reações demonstram o quanto de atenção prestamos e nos interessamos
pelas manifestações da homossexualidade. Homens e mulheres civilizados trazem sempre
para o tema da conversa esse tipo de manifestação do comportamento. Riem, fofocam, fingem
que se assustam, criticam ou reagem favoravelmente ou contra esses comportamentos.
Não devemos considerar o comportamento reativo homossexual como doença ou semvergonhice,
como bom ou mau comportamento, como direito ou falta de direito, como
conquista ou retrocesso. É sensato compreendê-lo como sintoma social. Como forma reativa
individual frente a pressões antinaturais geradas pelo próprio processo civilizatório, que se
projeta contra os indivíduos de ambos os sexos. Na verdade parece ser um mecanismo de
segurança usado pela natureza para a preservação da espécie, já que é através do mecanismo
de reprodução que ela se utiliza para alcançar esse fim.
É possível que as manifestações homossexuais humanas possam se originar do
ambiente antinatural (ausência de modelo cultural equilibrado) da civilização ocidental, que
também produz com excessiva freqüência outros fenômenos como: suicídio, prostituição,
mendicância, fome e o uso excessivo de drogas.
Não somos homens ou mulheres. Estamos homens ou mulheres enquanto função
masculina ou feminina à disposição do caminho da evolução da espécie. Na verdade somos,
ou estamos sendo, sempre uma metade ou outra, dependendo de como nos sentimos e a que
pressões estamos sendo submetidos dentro do ambiente confuso e desintegrador da sociedade
branca. O nosso comportamento reativo está sempre mexendo com as nossas metades. A
sabedoria da natureza está muitos milhões de anos-luz à frente daquilo que costumamos
chamar de “sabedoria humana”. É preciso que nos resignemos sempre à nossa condição de
criaturas e não de criadores. Erramos muito e acertamos pouco, mas, ainda assim, queremos
viver e conviver.
A alavanca criadora da natureza sempre esteve preocupada com a preservação das
espécies. A minhoca, por exemplo, um ser de poucos recursos, que é obrigada a viver
embaixo da terra, foi presenteada com dois sexos, ou seja, é hermafrodita. Uma minhoca num
prolongado ato sexual com outra minhoca é capaz de engravidar e ficar grávida ao mesmo
tempo. Ambas passam a ser, simultaneamente, pai e mãe; seus filhotes terão, portanto, dois
pais e duas mães. Além disso, se for cortada uma parte do seu corpo, o pedaço que sobrou
pode regenerar-se e reproduzir o que faltou.
Nossa metade branca nos diz que, se esse presente da natureza tivesse cabido a nós, a
anarquia seria total. E, mesmo assim, ainda nos consideraríamos seres inteligentes e
lutaríamos pelo controle da natalidade.
Os criadores de peixes ornamentais em aquários e tanques, já viram lindos machos de
peixes, com o tempo, se transformarem em fêmeas que acabaram por parir muitos filhotes.
Outras vezes, fêmeas prolíficas, começam a mudar de cor e suas nadadeiras se alongam como
a dos machos e elas começam a perseguir outras fêmeas. Galinhas cantando como galos e
montando nas suas companheiras de sexo e tantos outros exemplos entre animais nos faz
lembrar que pertencemos, sim, à escala zoológica.
O hermafroditismo e a metamorfose sexual, entre outros, são fenômenos do reino
animal que demonstram com perfeição como a natureza se preveniu para manter e preservar
as espécies. Nossa ignorância, muitas vezes, não está preparada para entender esses recursos.
Para ilustrarmos como os índios se organizam dentro de seus modelos culturais e
simbolizam os conceitos de masculino e feminino, passaremos a transcrever um trecho do
livro “A Sociedade contra o Estado” do etnólogo Pierre Clastres. Trata do Arco (símbolo
masculino) e do Cesto (símbolo feminino) determinando uma organização e um equilíbrio na
cultura dos índios Guaiaquí. Começa assim:
“Uma oposição muito clara organiza e domina a vida quotidiana dos guaiaquí:
aquela dos homens e das mulheres cujas atividades respectivas, marcadas
fortemente pela divisão sexual das tarefas, constituem dois campos nitidamente
separados e, como aliás em todos os lugares, complementares. Mas,
diferentemente da maioria das outras sociedades indígenas, os guaiaquí, não
conhecem forma de trabalho em que participem ao mesmo tempo os homens e as
mulheres. A agricultura, por exemplo, alterna tanto atividades masculinas como
femininas, já que, se em geral as mulheres se dedicam a semear, a limpar os
campos de cultivo e a colher os legumes e cereais, são os homens que se
encarregam de preparar o lugar das plantações derrubando as árvores e
queimando a vegetação seca. Mas, se os papéis são bem distintos e nunca se
misturam nem por isso deixam de assegurar em comum o início e o sucesso de
uma operação tão importante como a agricultura. Ora, nada disso ocorre com os
guaiaquí.
Nômades que tudo ignoram da arte de plantar, sua economia apoia-se
exclusivamente na exploração dos recursos naturais que a floresta oferece. Estes
se distribuem sob duas rubricas principais: produtos da caça e produtos da
coleta, esta última compreendendo sobretudo o mel, as larvas e o cerne da
palmeira Pindo.
Poderíamos pensar que a procura dessas duas classes de alimento se conformaria
ao modelo muito difundido na América, do Sul segundo o qual os homens
caçam, o que é natural, deixando para as mulheres o cuidado de coletar. Na
realidade, as coisas se passam de maneira muito diferente, uma vez que, entre os
guaiaquí, os homens caçam e também coletam. Não que, mais atentos que outros
ao lazer de suas esposas, quisessem dispensá-las das tarefas que normalmente
lhes caberiam; mas, de fato, os produtos da coleta são obtidos à custa de
operações penosas que as mulheres dificilmente realizariam: localização das
colméias, extração do mel, derrubada das árvores, etc. Trata-se então de um tipo
de coleta que concerne bem mais as atividades masculinas. Ou, em outros
termos, a coleta conhecida em outros lugares na América e que consiste na
obtenção de bagas, frutas, raízes, insetos etc. É quase inexistente entre os
guaiaquí, pois, na floresta por eles ocupada não são abundantes os recursos desse
gênero. Então, se as mulheres praticamente não coletam, é porque nela quase
nada existe para ser coletado.
Conseqüentemente, como as possibilidades econômicas dos guaiaquí estão
culturalmente reduzidas pela ausência da agricultura e naturalmente reduzidas
pela relativa raridade dos alimentos vegetais, a tarefa cada dia recomeçada de
procurar alimentação para o grupo incumbe essencialmente aos homens. Isso
não significa que as mulheres não participam na vida material da comunidade.
Além de lhes caber a função, decisiva para os nômades, do transporte dos bens
familiares, as esposas dos caçadores fabricam cestos, potes, cordas para os arcos;
elas cozinham, cuidam das crianças etc. Longe, então, de serem ociosas, elas
dedicam inteiramente o tempo de que dispõem à execução de todos esses
trabalhos necessários. Mas não deixa de ser verdade que no plano fundamental
da “produção” de alimentos, o papel de fato menor desempenhado pelas
mulheres deixa aos homens o absorvente e prestigioso monopólio. Ou, mais
precisamente, a diferença entre homens e mulheres ao nível da vida econômica
surge como a oposição de um grupo de produtores e de um grupo de
consumidores.
O pensamento guaiaquí, como veremos, exprime claramente a natureza dessa
oposição que, por estar situada na própria raiz da vida social da tribo, comanda a
economia de sua existência quotidiana e confere sentido a todo um conjunto de
atitudes na qual se liga a trama das relações sociais.
O espaço dos caçadores nômades não se pode repartir segundo as mesmas linhas
que o dos agricultores sedentários. Dividido por estes em espaço da cultura,
constituído pela aldeia e pelos campos de cultivo, e em espaço da natureza
ocupado pela floresta circundante, ele se estrutura em círculos concêntricos. Para
os guaiaquí, ao contrário, o espaço é constantemente reduzido à pura extensão
onde é abolida, ao que parece, a diferença da natureza e da cultura. Mas, na
realidade, a oposição já salientada no plano da vida material fornece igualmente
o princípio de uma dicotomia do espaço que, por ser mais disfarçada do que em
sociedades de outro nível cultural, nem por isso e menos pertinente.
Existe entre os guaiaquí um espaço masculino e um espaço feminino,
respectivamente definidos pela floresta onde os homens caçam e pelo
acampamento onde reinam as mulheres.
Sem dúvida as paradas são muito provisórias: elas raramente duram mais de três
dias. Mas é o lugar de repouso onde se consome a alimentação preparada pelas
mulheres, ao passo que a floresta é o lugar do movimento especialmente
destinado as incursões dos homens em busca da caça. Não poderíamos,
evidentemente, tirar desse fato a conclusão de que as mulheres são menos
nômades que seus esposos. Mas, por causa do tipo de economia em que está
apoiada a existência da tribo, os verdadeiros senhores da floresta são os
caçadores: eles efetivamente à cercam, pois são obrigados a explorá-la com
minúcia para explorar sistematicamente todos os seus recursos. Espaço do
perigo, do risco, da aventura sempre renovada para os homens, para as mulheres,
a floresta é, ao contrário, espaço percorrido entre duas etapas, travessia
monótona e fatigante, simples extensão neutra.
No pólo oposto o acampamento oferece ao caçador a tranqüilidade do repouso e
a ocasião de fazer trabalhos rotineiros, enquanto é para as mulheres o lugar onde
se realizam suas atividades específicas e se desenrola uma vida familiar que elas
controlam amplamente. A floresta e o acampamento encontram-se, assim,
dotados de signos contrários conforme se trate de homens ou de mulheres. O
espaço, poder-se-ia dizer, da “banalidade quotidiana” é a floresta para as
mulheres, o acampamento para os homens: pare estes a existência só se torna
autêntica quando a realizam como caçadores, quer dizer, na floresta, e para as
mulheres quando, deixando de ser meios de transporte, elas podem viver no
acampamento como esposas e como mães. Podemos então medir o valor e o
alcance da oposição socioeconômica entre homens e mulheres porque ela
estrutura o tempo e o espaço dos guaiaquí.
Ora, eles não deixam no impensado o vivido dessa práxis: têm uma consciência
clara e o desequilíbrio das relações econômicas entre os caçadores e suas
esposas se exprime no pensamento dos índios como a “oposição entre o arco e o
cesto”.
Cada um desses dois instrumentos é, com efeito, o meio, o signo e o resumo de
dois “estilos” de existência tanto apostos como cuidadosamente separados.
Quase não e necessário sublinhar que o arco, arma única dos caçadores, é um
instrumento exclusivamente masculino e que o cesto, coisa das mulheres, só é
utilizado por elas: os homens caçam, as mulheres carregam.
A pedagogia dos guaiaquí se estabelece principalmente nessa grande divisão de
papéis. Logo aos quatro ou cinco anos, o menino recebe do pai um pequeno arco
adaptado ao seu tamanho; a partir de então ele começara a se exercitar na arte de
lançar com perfeição uma flecha.
Alguns anos mais tarde, oferecem-lhe um arco muito maior, flechas já eficazes,
e os pássaros que ele traz para sua mãe são a prova de que ele é um rapaz sério e
a promessa de que será um bom caçador. Passam-se ainda alguns anos e vem a
época da iniciação; o lábio inferior do jovem de cerca de 15 anos é perfurado;
ele tem o direito de usar o ornamento labial, o “beta”, e é então considerado um
verdadeiro caçador, um “Kybuchuété” (caçador). Isso significa que um pouco
mais tarde ele poderá ter uma mulher e deverá conseqüentemente prover as
necessidades do novo lar.
Por isso, o seu primeiro cuidado, logo que se integra na comunidade dos homens
é fabricar para si um arco; de agora em diante membro “produtor” do bando, ele
caçará com uma arma feita por suas próprias mãos e apenas a morte ou a velhice
o separarão de seu arco.
Complementar e paralelo é o destino da mulher. Menina de 9 ou 10 anos, recebe
de sua mãe uma miniatura de cesto, cuja confecção ela acompanha atentamente.
Ela nada transporta, sem dúvida; mas, o gesto gratuito de sua marcha - cabeça
baixa e pescoço estendido nessa antecipação do seu esforço futuro - a prepara
para seu futuro próximo. Pois o aparecimento, por volta dos 12 ou 13 anos, da
primeira menstruação e o ritual que sanciona a chegada da sua feminilidade
fazem da jovem virgem uma “daré”, uma mulher que será logo esposa de um
caçador. Primeira tarefa do seu novo estado e marca da sua condição definitiva,
ela fabrica então o seu próprio cesto. E cada um dos dois, o jovem e a jovem,
tanto senhores como prisioneiros, um do seu cesto, o outro do seu arco,
ascendem dessa forma à idade adulta. Enfim, quando morre um caçador, seu
arco e suas flechas são ritualmente queimados, como o é também o último cesto
de uma mulher: pois, como símbolos das pessoas, não poderiam sobreviver a ela.
Os guaiaquí apreendem essa grande oposição, segundo a qual funciona sua
sociedade, por meio de um sistema de proibições recíprocas: uma proíbe as
mulheres de tocarem o arco dos caçadores; outra impede os homens de
manipularem o cesto. De um modo geral, os utensílios e instrumentos são
sexualmente neutros, se se pode dizer: o homem e a mulher podem utilizá-los
indiferentemente; só o arco e o cesto escapam a essa neutralidade.
Esse tabu sobre o contato físico com as insígnias mais evidentes do sexo oposto
permite evitar assim toda transgressão da ordem sócio-sexual que regulamenta a
vida do grupo. Ele é escrupulosamente respeitado e nunca se assiste à estranha
conjunção de uma mulher e um arco nem aquela, mais que ridícula, de um
caçador e um cesto. Os sentimentos que cada da sexo experimenta com relação
ao objeto privilegiado do outro são muito diferentes: um caçador não suportaria
a vergonha de transportar um cesto, ao passo que sua esposa temeria tocar seu
arco. É que o contato da mulher e do arco é muito mais grave que o do homem e
do cesto. Se uma mulher pensasse em pegar um arco, ela atrairia, certamente,
sobre seu proprietário o “pané”, quer dizer, o azar na caça, o que seria desastroso
para a economia dos guaiaquí.
Quanto ao caçador, o que ele vê e recusa no cesto é precisamente a possível
ameaça do que ele teme acima de tudo, o “pané”. Pois, quando um homem é
vítima dessa verdadeira maldição, sendo incapaz de preencher sua função de
caçador, perde por isso mesmo a sua própria natureza e a sua substância lhe
escapa: obrigado a abandonar um arco doravante inútil, não lhe resta senão
renunciar a sua masculinidade e, trágico e resignado, encarrega-se de um cesto.
A dura lei dos guaiaquí não lhe deixa alternativa. Os homens só existem como
caçadores, e eles mantêm a certeza da sua maneira de ser preservado o seu arco
do contato da mulher. Inversamente, se um indivíduo não consegue mais
realizar-se como caçador, ele deixa ao mesmo tempo de ser homem: passando do
arco para o cesto, metaforicamente ele “se torna uma mulher”. Com efeito, a
conjunção do homem e do arco não se pode romper sem transformar-se na sua
inversa e complementar: aquela da mulher e do cesto.
Ora, a lógica desse sistema fechado, constituído de quatro termos grupados em
dois pares opostos, ficou provada: havia entre os guaiaquí dois homens que
carregavam cestos: Um, Chachubutawachugi, era “panema”. Não possuía arco e
a única caça à qual podia entregar-se de vez em quando era captura à mão de
tatus e quatis: tipo de caça que, embora correntemente praticada por todos os
guaiaquí, está bem longe de apresentar a seus olhos a mesma dignidade que a
caça com o arco, o “jyvondy”. Por outro lado Chachubutawachugi era viúvo; e,
como era “panema”, nenhuma mulher queria saber dele, mesmo que a titulo de
marido secundário. Ele tampouco procurava integrar-se à família de um de seus
parentes: estes teriam julgado indesejável a presença permanente de um homem
que agravasse sua incompetência técnica com um excelente apetite. Sem esposa
porque sem arco, só lhe restava aceitar, sua triste sorte. Nunca acompanhava os
outros homens em suas expedições de caça, mas partia, só ou em companhia das
mulheres, em busca de larvas, mel ou dos frutos que ele havia antes localizado.
E, para poder transportar o produto de sua coleta, munia-se de um cesto que uma
mulher lhe havia dado de presente. Como o azar na caça lhe destruía o acesso as
mulheres, ele perdia, ao menos parcialmente, sua qualidade de homem e se
achava assim rejeitado no campo simbólico do cesto.
O segundo caso é um pouco diferente; Krembégi era na verdade um sodomita.
Ele vivia como as mulheres e, a semelhança delas, mantinha em geral os cabelos
nitidamente mais longos que os outros homens, e só executava trabalhos
femininos: ele sabia tecer e fabricava, com os dentes de animais que os
caçadores lhe ofereciam, colares que demonstravam um gosto e disposições
artísticas muito melhor expressas do que nas obras das mulheres. Enfim, ele era
evidentemente proprietário de um cesto. Em suma Krembégi atestava assim no
seio da cultura guaiaquí a existência inesperada de um refinamento
habitualmente reservado a sociedades menos rústicas.
Esse pederasta incompreensível vivia como uma mulher e havia adotado as
atitudes e comportamentos próprios desse sexo; ele recusava, por exemplo, tão
seguramente o contato de um arco como o caçador o do cesto. Ele considerava
que seu lugar natural era o mundo das mulheres; Krembégi era homossexual
porque era “panema”. Talvez também seu azar na caça proviesse de ser ele,
anteriormente, um invertido inconsciente. Em todo caso, as confidências de seus
companheiros revelavam que sua homossexualidade se tornara oficial, quer
dizer, socialmente reconhecida, quando ficara evidente a sua incapacidade de se
servir de um arco: para os próprios guaiaquí ele era um “Kyrypy-meno” (ânus -
fazer amor) porque era “panema”.
Os “aché” mantinham aliás uma atitude muito diferente com relação a cada um
dos dois carregadores de cesto que acabamos de evocar. O primeiro,
Chachubutawachugi, era objeto de caçoada geral, se bem que desprovida de
verdadeira maldade: os homens o desprezavam bastante nitidamente, as
mulheres dele riam à socapa, e as crianças tinham por ele um respeito muito
menor do que pelos outros adultos. Krembégi ao contrário não despertava
nenhuma atenção especial; consideravam-se evidentes e adquiridas a sua
incapacidade como caçador e a sua homossexualidade. De tempos em tempos,
certos caçadores faziam dele seu parceiro sexual, manifestando nesses jogos
eróticos mais libertinagem - ao que parece - do que perversão. Mas não ocorreu
nunca por parte deles qualquer sentimento de desprezo para com ele.
Inversamente e se conformando nisso à imagem que deles fazia sua própria
sociedade, esses dois guaiaquí se mostravam desigualmente adaptados ao seu
respectivo estatuto.
Krembégi estava tão à vontade, tranqüilo e sereno em seu papel de homem
tornado mulher, quanto Chachubutawachugi parecia inquieto, nervoso e
freqüentemente descontente. Como se explica essa diferença introduzida pelos
“aché” no tratamento reservado a dois indivíduos que, ao menos no plano
formal, eram “negativamente” idênticos ?
É que, ocupando ambos uma mesma posição em relação aos outros homens, uma
vez que os dois eram “panema”, seu estatuto positivo deixaria de ser
equivalente, pois um deles, Chachubutawachugi, embora obrigado a renunciar
parcialmente às determinações masculinas, permanecera um homem, enquanto o
outro, Krembégi, assumira até as últimas conseqüências sua condição de homem
não-caçador, tornando-se uma mulher. Ou, em outros termos, Krembégi havia
encontrado, por meio de sua homossexualidade, o “topos” ao qual o destinava
logicamente sua incapacidade de ocupar o espaço dos homens; o outro, em
compensação, recusando o movimento dessa mesma lógica, estava eliminado do
círculo dos homens sem, entretanto, com isso integrar-se ao das mulheres. O que
significa dizer que, literalmente, “ele não estava em lugar algum”, e que sua
situação era muito mais incômoda que a de Krembégi.
Este último ocupava aos olhos dos “aché” um lugar definido, embora paradoxal;
e desprovida, em certo sentido, de toda ambigüidade, sua posição no grupo
resultava normal, mesmo que essa nova norma fosse a das mulheres.
Chachubutawachugi, ao contrário, constituía por si mesmo uma espécie de
escândalo lógico; não se situando em nenhum lugar nitidamente identificável,
ele escapava do sistema e introduzia nele um fator de desordem: o anormal, sob
certo ponto de vista, não era o outro, mas ele. Daí sem dúvida a agressividade
secreta dos guaiaquí com relação a ele, que se manifestavam por vezes nas
caçoadas. Daí também, provavelmente as dificuldades psicológicas que ele
experimentava e um sentimento agudo de abandono: tão difícil é manter a
conjunção de um homem e de um cesto.
Chachubutawachugi queria, pateticamente, permanecer um homem sem ser um
caçador: ele se expunha assim ao ridículo e, portanto, às caçoadas, pois era o
ponto de contato entre duas regiões normalmente separadas.
Pode-se supor que esses dois homens mantivessem ao nível de seu cesto a
diferença das relações que tinham com sua masculinidade. De fato Krembégi
carregava seu cesto como as mulheres, isto é com a tira do suporte “sobre a
testa”. Quanto a Chachubutawachugi, colocava a tira “sobre o peito” e nunca
sobre a teste. Era claramente uma maneira desconfortável e muito mais fatigante
do que a outra, de transportar o cesto; mas era também para ele o único meio de
mostrar que, mesmo sem arco, continuava sendo um homem.”
Vimos então que a Ordem Natural aceita certas diferenças, mas não suporta a
confusão. Vimos também que na organização social dos guaiaquí a identidade sexual da tribo
fica preservada quando distribui as tarefas masculinas e femininas, determinando assim os
seus símbolos no plano da cultura.
Sua organização social vincula a identidade sexual ao trabalho, a economia, aos
símbolos (arco e cesto) e ao mito (panema = azar). Não é apenas a prática sexual ou a
genitália que identifica e difere o masculino do feminino nessa sociedade com modelo cultural
preservado e em equilíbrio. Essa prática de representar o sexo entre eles é o resultado da forte
integração sociocultural onde todos os elementos (tarefas, símbolos, economia, identidade e
mito) estão indissoluvelmente ligados para permitir a tradição do grupo e facilitar a vida
grupal.
Cabe agora uma pergunta: em que lugar do “mundo civilizado” podemos encontrar um
modelo cultural tão equilibrado e saudável para o desenvolvimento psicossocial dos
indivíduos? A expressão “cultura civilizada” possui algum sentido coerente?
A homossexualidade encontrada na vida civilizada resulta de uma desorganização
cultural progressiva e expressa a desorganização dos sentimentos, princípios e valores que
normalmente existem e se encontram integrados nos modelos socioculturais organizados. A
preferência sexual depende menos de uma simples escolha individual e está diretamente
relacionada ao modo de viver e conviver dentro de parâmetros predeterminados e bem
definidos pela cultura dos grupos sociais.
Nesse particular conseguimos não ser tão diferentes dos índios. Guardarmos, ainda
que de forma distorcida e anárquica, alguns valores, símbolos e tarefas correspondentes ao
masculino e ao feminino. Alguns homens não aceitam as cores lilás e cor-de-rosa nas suas
roupas. O uso de brincos, pulseiras e colares não são bem aceitos por todos os homens.
Tarefas como a de figurinistas, cabeleireiros e colunistas sociais ainda são tratados como
pouco masculinas. É raro se ver mulheres trabalhando em serviços braçais pesados, dirigindo
tratores ou fumando cachimbos.
O fenômeno homossexual quando visto somente pelo ângulo individual, da prática
sexual, se mostra falso e pobre. Toda sociedade equilibrada o conhece e reconhece associado
às funções, bio-psico-sócio-culturais.

Furto e Afeto
O furto é uma forma simbólica de ganhar afeto. Todos nós aprendemos a furtar na
sociedade civilizada porque precisamos preencher de vez em quando os nossos sacos vazios
de afeto. Não importa se o que “temos” está em forma de patrimônio, objetos, dinheiro,
capacidade intelectual, talento, prestígio ou qualquer uma outra condição que nos permita
sentir satisfação e felicidade. A nossa identidade pessoal precisa de algo mais que nos
“preencha” de alguma forma, que nos faça sentir que “temos” alguma importância para nós e
para os outros.
Com o desenvolvimento tecno-industrial a humanidade experimentou uma série de
transformações rápidas no que diz respeito às suas aquisições internas, ou seja, nos
sentimentos, princípios e valores individuais que a vivência da cultura nos imprime. Isso pode
ter modificado nosso comportamento.
Furtar significa “incorporar, colocar para dentro” algum valor, algo de muito
importante para alguém ou para nós. Como o ato de furtar não é aceito socialmente e, muitas
vezes, vem acompanhado de reprovação e punição, é comum a pessoa que furta experimentar
variados sentimentos como: medo, vergonha, excitação, apreensão, prazer, etc. É como ser
apanhado em flagrante num gesto infantil e primário que remete ao mais profundo e escuro
local da nossa intimidade afetiva; é uma forma proibida e angustiante de manter contato com
os outros e conosco mesmo.
Todos nós, ou já sentimos desejo de furtar ou já furtamos alguma vez na vida. Não
interessa o valor do que foi furtado e sim o ato simbólico do furto. O afeto e o furto estão
fortemente associados e presentes dentro de todos nós porque vivemos em uma sociedade
cujo estatuto central é o de “ter ou possuir para ser visto, amado ou admirado”.
Quem já não ouviu contar casos de pessoas que furtam livros, plantas, canetas,
isqueiros, obras criadas por outros, objetos de avião, de restaurantes e de tantos outros
lugares? Todos furtamos. Na maioria das vezes não sabemos explicar de onde se originam
esses impulsos estranhos, o que estamos querendo preencher com esses furtos e quais as
mensagens afetivas que estão contidas neles. Mas, mesmo assim, furtamos! Somos ladrões de
afeto e estamos sempre insatisfeitos com as nossas repetidas e arriscadas investidas.
Há três modalidades de furtos: os grosseiros, os medianos e os leves ou sutis. Há quem
use a violência para retirar do outro aquilo que deseja para si; há os que mentem para poderem
adquirir mais um pouco do que poderia ser adquirido se falassem a verdade; há os que
representam durante muito tempo, utilizando-se de vários artifícios, para conseguirem afinal
os seus objetivos de ganhar alguma coisa.
Alguns donos de supermercados, lojas, empresas de diversas naturezas furtam nos
preços porque sentem que estão perdendo alguma coisa ou poderiam ganhar um pouquinho
mais e tentam justificar com elegância a “coerência” desses furtos. Diferentes prestadores de
serviços usam seus “truques” para conseguir alcançar os mesmos objetivos.
Pai e filho, irmão e irmão, amigo e amigo, patrão e empregado, homens e mulheres,
todos nós, fazemos das nossas relações humanas, com freqüência cada vez maior, um espaço
de “ganho material” (sinônimo e código de ganho afetivo) para alcançarmos o nosso objetivo
de plenitude interna. A nossa voracidade no ganhar, no entanto, nunca nos preenche porque
não consegue atingir o centro do nosso verdadeiro desejo: o afeto. Atributo importantíssimo
para o equilíbrio constante do psiquismo e muito raro nos dias de hoje. Tão raro que é preciso
furtá-lo por não ser concedido facilmente de forma aberta e gratuita.
Estranhamos muito e, sempre foi muito difícil, para nós, compreender a vida e os
relacionamentos das sociedades humanas naturais, na sua aparente simplicidade, que nos
mostra claramente uma rica e complexa rede de experiências afetivas, econômicas, religiosas
e muitas outras. Há quem os chame de “povos primitivos” ou de “indígenas”; há os que os
considerem atrasados, preguiçosos, sem tecnologia, pré-letrados ou pré-colombianos. Inveja?
Desinformação? Negação da realidade? Etnocentrismo? Não interessa a razão. Lá, eles não
conhecem o “furto” assim como o conhecemos aqui, porque não há necessidade de furtar
numa sociedade que guardou dentro do seu espaço cultural um lugar privilegiado para o afeto.
Dentro e fora desses indivíduos existem lugares e momentos dedicados às relações humanas
afetivas que não foram ainda substituídos pela voraz, desesperada e ineficaz “corrida para o
consumo” com a qual estamos acostumados.
Quando um índio guarda por algum tempo um objeto desconhecido, trazido por um
“civilizado” para a aldeia, por simples curiosidade, não é um furto. O verdadeiro furto se
origina do impulso ou da compulsão em apropriar-se de alguma coisa pela necessidade de
preencher algum “vazio” afetivo preexistente e gerado por um “modo de viver” que não
reservou um lugar especial para o afeto no terreno dos contatos entre as pessoas.
Não vemos e não temos informações de fontes idôneas sobre a ocorrência de furtos
nessas sociedades naturais porque não é da natureza humana equilibrada o desejo de fazer
contatos interpessoais através do furto. Essa forma inadequada de relacionar-se só vinga nas
sociedades que costumamos chamar de “civilizadas”, sinônimo de “sociedades socialmente
desequilibradas”. Social, econômica, religiosa e afetivamente desequilibradas.
Outras civilizações mais antigas já percorreram o mesmo caminho que estamos
insistindo em repetir e se deram mal: desapareceram e não existem mais. Não souberam
construir o Templo do Afeto, local na cultura, onde se deve erigir o altar para o culto das
relações afetivas entre os homens, mulheres e crianças. Regredimos no tempo para voltar a
adorar os mesmos conceitos antigos de “progresso e desenvolvimento econômico” usados
pelos povos antigos.
Ouvimos com freqüência, através do discurso de políticos e autoridades econômicas,
expressões como: “Quando o país encontrar sua estabilidade econômica...”, “se a inflação
cair...”, “quando houver melhor distribuição da renda...”, todas direcionadas para uma
expectativa econômico-financeira, esquecendo-se esses senhores que o fenômeno econômico
e suas distorções são resultantes das distorções do comportamento humano, dos seus sonhos,
das suas ambições e fantasias e, - por que não dizer? - das patologias pessoais e dos grupos de
pessoas que controlam a vida política e econômica das nações civilizadas.
Entre os povos das sociedades naturais aprendemos mais sobre progresso e
desenvolvimento humano do que em toda a nossa vida nas escolas e universidades civilizadas,
nos livros escritos sobre o assunto e nos simpósios, congressos e seminários dos quais
participamos. Nunca veremos escolas ou templos deles, nunca assistiremos um professor falar
entre eles, nada há escrito em livros. Há apenas a convivência diária. Quem ensinou a eles
essa forma tão sábia de viver e conviver? Não sabemos. Só sabemos que já vivemos como
eles vivem hoje, há alguns milênios atrás. Talvez tenhamos esquecido muita coisa do que eles
sabem.
Se perguntássemos aos antropólogos porque os admiram tanto, provavelmente
responderiam: “Porque vemos neles o que fomos ontem e o que - de uma forma nova e
adaptada - poderemos ser amanhã. Não dá mais para viver (e assistir outros vivendo) numa
sociedade sem futuro, onde violência, injustiça e fome existem porque dão lucro e geram
notícias e empregos.
O furto é o sintoma de uma sociedade infeliz. Uma sociedade “sem espírito de corpo”,
isto é, sem eixo cultural, sempre em dúvida se deve ou não situar a figura humana no centro
dos seus sentimentos, princípios e valores. Furtamos porque nos sentimos infelizes e solitários
e acreditamos que uma grande quantidade de bens materiais possa vir a mitigar o nosso
sofrimento. As crianças furtam porque se sentem solitárias ao lado dos pais, os pobres furtam
porque se sentem injustiçados e abandonados e os ricos vão continuar furtando porque, como
as crianças e os pobres, acreditam que a riqueza material possa lhes dar um dia o afeto, a
segurança e a felicidade que todos desejam ter dentro de si.
Furtar é um gesto humano e simbólico de quem se sente vazio de amor. Não devemos
reprovar os que furtam, sejam ricos, pobres ou crianças porque todos estão usando a mesma
linguagem para expressar a mesma mensagem. Somente os que se sentem satisfeitos
internamente com a solidariedade, a partilha, a generosidade, a convivência justa e fraterna
não sentem vontade de furtar porque já possuem o que de mais importante existe na vida: a
consciência plena da igualdade e da alegria de conviver em harmonia e num espaço afetivo
amplo e justo com todos.
O poder, o dinheiro e o prestígio possuem o mesmo significado e a mesma força no
interior das sociedades civilizadas. Todos ou quase todos os homens vivem sob a ilusão de
conquistá-los um dia. Na verdade esses três desejos do homem moderno representam uma
coisa só: o controle neurótico! Controlar os outros significa para o homem neurótico da nossa
civilização “a super-conquista sobre os demais”, a realização maior da sua estória humana, a
grande façanha de sair da mísera condição humana e se transformar no “maior super-herói de
todos os tempos” e, do alto desse “podium”, se sentir em condições de ganhar a “Taça do
Afeto”, a “Medalha da Segurança” e a “Fita do Amor”.
Ter certeza de que todos o amam, admiram e não o deixarão sozinho e de frente com a
sua solidão. Só assim sentir-se-á seguro para começar a procurar dentro de si o que já possui,
mas só consegue acreditar que exista do lado de fora, nos outros, e nos objetos que levou sua
vida inteira para adquirir. Furtar pode ser uma forma de abreviar esse caminho da busca da
felicidade interna para muitas pessoas que se esqueceram de construir esse “podium” e de
procurar taças, fitas e medalhas dentro de si próprias. Órfãos de uma sociedade que destrói
seus filhos ensinando-lhes o caminho da ganância da competição e da mentira.
Furtar é pedir socorro para os que julgamos proprietários da felicidade. É mendigar
afeto para outros mendigos que, como nós, também precisam furtar para se tornarem
aparentemente ricos.
Certa vez perguntaram a um mendigo qual o seu maior desejo. Ele respondeu: -
Morrer e ir para o céu...Lá não falta nada...Deus é Amor, é Esperança e Caridade. Há pessoas
que vivem pensando em morrer para poderem encontrar-se com a felicidade. Por que é
preciso morrer para ser feliz? Não é possível ser feliz vivendo? Furtar ou mendigar é um
passaporte para os que ainda não tiveram coragem para atalhar o caminho? Não sabemos
responder essas perguntas, mas nos sentimos muito tristes por saber que elas existem.
Perguntaram para um velho pescador, na Amazônia, que costumava distribuir, o peixe
que sobrava após a venda, para os outros moradores pobres do lugar, se ele não tinha medo de
ficar mais pobre ainda e lhe faltar no futuro o que ele generosamente distribuía no presente.
Ele olhou demoradamente, sorriu e falou com a serenidade de quem tem certeza: - “Eu sou
rico. Nunca faltou nada para mim e o que sobra eu dou pro’s outros. Estou com essa idade e
sempre fiz isso, nunca fiquei pobre por causa disso. Todo dia eu pesco e todo dia sobra peixe
e eu distribuo com quem não tem. Quando fico doente ou não posso pescar, sempre encontro
quem me dê. A riqueza tá dentro da gente e da Natureza, meu filho! Não acredite nessas
mentiras que andam inventando por aí... Donde você é?... Como é seu nome?... Quer um
peixe prá você? Eu tiro do meu...tem mais lá em casa...”.
Muitos ainda não acreditam que uma sociedade é um corpo só, constituído de vários
órgãos que são os povos, de vários tecidos que são as culturas e de várias células que são os
homens, mulheres e crianças. A nossa casa é o planeta, a nossa água são os oceanos, rios,
riachos e lagoas, as nossas plantas são as florestas e os campos e o nosso alimento é o amor.
Quantos já entraram nessa casa e já saíram dela? O que fizeram durante a sua permanência
provisória? O que faremos nós, os ainda residentes? Furtaremos os outros moradores para que
possamos ocupar os melhores e mais confortáveis lugares da casa? Cada um é dono apenas
dos seus “bens internos” - sentimentos, princípios e valores de caráter, - e do seu livrearbítrio.
Tão dono que os leva consigo após a morte.
Somos e seremos sempre usufrutuários dos bens materiais enquanto vivermos. Nunca
proprietários!!! Pois a morte nos ensina que o conceito de “propriedade” é uma frágil ilusão.
Cada experiência afetiva pessoal é intransferível e única. Sentir não é ter, é só sentir. Quando
sentimos uma alegria não nos tornamos proprietários dela, só a sentimos. Nossos sentimentos
morrem junto conosco, nossos bens serão distribuídos entre os vivos.
Só pararemos de furtar quando nos sentirmos próximos uns dos outros, quando essa
proximidade for verdadeira, quando nos trouxer alegria, justiça e paz; quando, espantados,
olharmos com atenção uns para dentro dos outros e virmos a nossa própria imagem refletir-se
do interior do outro, e voltar para nós inteira e igual.
A nossa imagem de pessoas inteiras não pode ser vista em qualquer espelho, só a nossa
consciência é capaz de refletir essa imagem que tanto desejamos ver. Furtar é uma mensagem
de amor...De falta de amor.

CAPÍTULO XI

Comportamento Reativo e Drogas

Entre os animais não existe prostituição, drogadição (toxicomania), crimes hediondos
e outros fenômenos que existem entre os homens. Eles agem por instintos, que são estímulos
desenvolvidos para a sobrevivência e reprodução. A consciência de si próprio no mundo, o
juízo critico ou discernimento e outros atributos superiores só existem nos seres humanos.
O mecanismo que induz as sociedades humanas a supervalorizar o sexo através da
associação com pecado, é percebido na relação entre proibição e droga. Compreendendo que a
associação sexo-pecado-dinheiro valoriza o produto (sexo), é fácil identificar a mesma
associação entre droga-proibição-dinheiro. Como o civilizado é potencialmente infrator (sem
modelo cultural), tudo o que é proibido passa a ter valor e, transgredir, passa a ser excitante.
Droga sem proibição é droga barata, desinteressante e não dá lucro. É necessário, portanto,
manter a proibição e a desinformação para valorizar o produto.

O valor social das drogas:
As drogas estão integradas à natureza desde o início do aparecimento da vida na Terra.
Por experiência instintiva e usando os sentidos, os animais reconhecem e selecionam os
vegetais, minerais ou animais que servem para sua alimentação ou que podem aliviar
incômodos ou doenças, dos que possam causar-lhes danos ou experiências desagradáveis.
Esse capacidade é essencial para a sua sobrevivência e para o aprendizado das relações com o
ambiente.
O uso das drogas pelo homem segue os mesmos rumos da experiência/sobrevivência e
se destaca pelo refinamento desse reconhecer, classificar e elaborar a droga através de
diferentes processos. Mas o que diferencia a relação homem/droga da relação animal/droga é
a capacidade humana de incorporá-la à sua cultura, de forma ritualizada e fortemente presa
aos seus costumes e valores.
As condições de sobrevivência dentro de uma cultura complexa permitiram ao homem
exercitar outras capacidades como a de falar, escrever, dançar, cantar e, inclusive, a de
intoxicar-se dentro das expectativas de cada grupo cultural e de cada indivíduo.
O cultivo, a manufatura, o tráfico e o uso de drogas apresenta consideráveis diferenças
segundo o grupo humano que as utilizam. A importância dada à substância tóxica é conferida
pelo grupo humano que a cultiva, transforma, comercia e usa. O interesse que desperta nos
diferentes grupos humanos reflete as expectativas e os interesses próprios de cada um desses
grupos. A forma de lidar com as drogas dentro de cada grupo étnico mostra claramente, entre
outras coisas, o seu nível de integração ou desintegração cultural.
Trabalho, lazer, sexualidade, religiosidade, drogas, além de outros componentes vitais,
fazem parte da dinâmica do corpo social e estão inter-relacionadas de forma a compor um
quadro social em movimento.
As formas de usar drogas e as condições que organizam esse uso podem ser diferentes
de acordo com os valores do grupo humano, mas todas elas são expressivas e significativas
para os indivíduos dentro de cada grupo.

A Droga nas Sociedades Primitivas:
Nas sociedades tribais as drogas estão incorporadas de forma equilibrada através de
ritos, crenças e tradições que compõem o seu mundo mágico, religioso, político e econômico,
que por sua vez está vinculado a elementos ético-morais, de lazer e da realidade ambiental.
Nessas sociedades as drogas estão associadas a diferentes situações: ao nascimento ou
morte de seus membros, nas grandes festas de iniciação, nos momentos de doenças, de cultivo
ou colheita de alimentos, etc. A incorporação das drogas a essas situações apresentam sempre
um significado próprio e estão condicionadas a regras e costumes que remetem à tradição do
grupo. Nem todos os membros as usam e o seu uso freqüentemente fica restrito a situações
determinadas. Nessas condições a droga passa a ter uma função social e a se revestir de um
caráter tradicional religioso ou curativo, respeitado e seguido por todos. Nessas sociedades,
portanto, a droga cumpre uma função social importante e é controlada por mecanismos sociais
aceitos consensualmente pelo grupo, servindo como elemento concreto de ligação entre o
mundo mágico e a realidade do dia-a-dia.

Conceitos e Preconceitos sobre as drogas na Sociedade Branca:
Já dissemos que os conceitos sobre drogas variam segundo os costumes e os valores
que as sustentam. Na sociedade branca destacamos três expectativas essenciais dos valores
sociais:

• A expectativa pelo poder econômico (ser rico, ter lucro, capacidade de
consumir).
• A expectativa pelo poder pessoal (fama, gloria, competência, ser conhecido por
todos, ser diferente dos outros).
• A expectativa pelo poder político (ser o líder, ter influência, dirigir e controlar
os outros).
Somando-se essas três expectativas, concluiremos que na sociedade branca os
indivíduos aspiram e exercitam suas a funções num plano de fantasia egocêntrica (“quero a
segurança e poder para mim” ou “quero ser alguém na vida”). Com esse perfil psicológico, o
indivíduo na sociedade branca, desempenha um papel neurótico de “controle”, que determina
o conteúdo das relações com os outros indivíduos, com os outros animais, com o meio
ambiente, com a terra, com o dinheiro, com as drogas, com o sexo, etc.
A sociedade branca lida com a droga de forma ambígua e paradoxal. Ao mesmo tempo
em que os moralistas a condenam e a segregam da realidade social, ela é usada
indiscriminadamente de forma abusiva e descontrolada por todas as classes sociais, por
indivíduos de todas as idades, com freqüência alarmante e totalmente desvinculada de
mecanismos controladores da sua função social.
Para os que a cultivam, manufaturam e comercializam sua importância se concretiza
no grande lucro que proporciona. Para os que a utilizam, sua função é permitir o alívio das
tensões, quebrar a rigidez das normas e atenuar as sensações de medo e insegurança,
permitindo alguns momentos de “certeza” e de auto-engrandecimento. Funciona como uma
“escapada” provisória da desorganização social.
Para os moralistas a droga se constitui no grande “bode expiatório” da humanidade.
Quase todos os males da sociedade estariam desaguando no elemento demoníaco depositado
na droga. Como elemento concentrador de culpa, a droga serve ao moralista com dupla
função:
• É base permanente do seu discurso e do seu “status”.
• Evita o confronto com outras questões da realidade social, como a fome, as
desigualdades sociais, as desigualdades econômicas, o desemprego, as guerras
e, sobretudo, o confronto com a questão da perda cultural.
O conceito de desenvolvimento e progresso na nossa civilização corre paralelo com a
nossa tendência materialista de lidar com as pessoas e com os objetos que nos cercam. Nossas
necessidades de aquisição de bens e de exercitar nosso poder (controle) sobre os demais e
sobre o ambiente, costuma ser do tamanho da nossa insegurança pessoal e do medo de nos
perdermos na solidão do associal. O homem civilizado vive só porque, mergulhado no seu
egoísmo e na desconfiança excessiva pelos outros, acaba enfraquecendo os vínculos pessoais
e desestabilizando as relações socioculturais. Seguindo essa premissa podemos pensar que o
apego possessivo às drogas possa representar uma tentativa dramática, e em nível
inconsciente, de incorporar as perdas sentidas no plano familiar e social, através da introdução
de tóxico no organismo de forma obsessiva.

Conceito Atual da Adição de Drogas:
Há bem pouco tempo se acreditava que o comportamento tóxico estivesse resumido a
uma corrente de apenas dois elos: a droga e o drogado. Na verdade, essa suposição muito
simples e cômoda serve a vários interesses:
• Tornar eficiente a solução do problema através de uma tendência imediatista
do homem moderno.
• Garantir à sociedade do trabalho e do lucro uma demanda de pessoas que,
classificadas como “doentes” ou “frágeis”, possam se constituir em clientela
segura para as instituições ou pessoas que se instrumentalizam com o “saber
científico”.
• Manter a sociedade e sua “ordem” em equilíbrio sem contestação dos seus
fundamentos econômicos, ético-morais ou religiosos, discriminando,
segregando ou diagnosticando os membros contestadores dessa ordem e dos
seus valores.
Com o súbito desenvolvimento dos meios de produção e do conhecimento científico
surgiram conceitos novos (eficiência, produtividade, lucratividade) que produziram profundas
alterações nos modos de pensar e de agir das sociedades industriais. A atenção se voltou para
os bens produzidos, para a descoberta científica e, sobretudo, para as inúmeras vantagens
pessoais e materiais advindas da execução dessas atividades. O centro de atenção da
sociedade industrial se deslocou do bem estar humano, para os objetos produzidos e a
produzir.
A Ciência concentrou o saber dos fenômenos naturais e a sua aplicação, nas mãos de
grupos restritos. A religião já vinha transformando a crença e os costumes em códigos morais
rígidos e culpáveis e elegeu um único Deus para substituir as múltiplas divindades existentes,
ligadas às diferentes necessidades da crença humana. A concentração ou centralização tem
sido sempre a grande tendência da sociedade que se auto-intitula de “civilizada”.
Como as necessidades e as aspirações humanas são sempre múltiplas e diferentes entre
si, chegando mesmo ao plano individual, o homem se ressente e expressa sua insatisfação de
diferentes maneiras. Uma delas é a conduta tóxica, comportamento reativo através do qual é
possível, mesmo transitoriamente, se expressar e “cair fora” do caos social. A introdução
excessiva de substâncias tóxicas no organismo é apenas uma das formas de fugir dos vínculos
sociais. Citaremos outras a título de exemplo:
• A fuga para o trabalho excessivo.
• A ingestão freqüente e prolongada de medicamentos (tranqüilizantes, sedativos
e outros).
• A busca obsessiva pela atividade sexual.
• O fanatismo religioso e o passeio por diferentes tipos de crença religiosa.
• A voracidade pelo dinheiro.
Enfim, as necessidades de incorporar ao pessoal o que o social não supre. É a
manifestação mais clara de que a ordem social branca não está voltada para o seu objetivo
principal - o homem. Na verdade, nossa sociedade “civilizada” é mais tóxica do que possamos
imaginar. O prazer de viver com os outros tem sido substituído pelo prazer de fazer, de
ganhar, de colecionar, de falar, de contar, de pensar e de mandar.
Estamos continuamente desenvolvendo nossa necessidade tóxica de adquirir objetos,
usufruir comodidades, perseguir ideais, consumir alimentos, remédios e drogas. A conduta
tóxica está muito mais representada pelo consumo abusivo e desritualizado do que pela
qualidade ou natureza química da substância ou da atividade individual. As críticas ao
comportamento tóxico ligado às pessoas e objetos padecem das mesmas características de
conteúdo. A droga é censurada e o drogadito marginalizado, sobretudo porque ele corre o
risco de se tornar improdutivo e reagir contra as regras sociais. Os outros drogaditos, isto é, os
que consomem abusivamente remédios, roupas e outros objetos ou bens produzidos, são
estimulados a desenvolverem o hábito de intoxicar-se e ganham com isso “status” e aprovação
social. A nossa sociedade só consegue ver na substância tóxica o princípio e o fim da
desagregação individual e social.
O mito da substância tóxica continua sendo tão necessário ao corpo da sociedade
como é a droga para o corpo do drogadependente. É preciso manter a qualquer custo a ilusão
de que tudo vai bem e que nosso destino é conquistar o Universo. Só não sabemos qual o
universo que desejamos conquistar.
O que nos interessa nessa nossa compreensão da convivência, não é propriamente a
substância tóxica, mas o uso excessivo e desordenado dela pelo homem, isto é, o abuso do seu
consumo, as conseqüências destrutivas desse abuso e os fatores que o determinam. Partimos
do princípio de que cada indivíduo necessita ter uma identidade pessoal e que essa identidade
serve de referência para os próprios indivíduos e para os que o rodeiam.
O indivíduo vê o mundo dentro da ótica de “si em relação ao ambiente”; nesse
ambiente estão os outros indivíduos, as plantas, a terra, os rios, ou seja, o mundo exterior a
ele. Cada indivíduo necessita ter uma identidade familiar (“os outros próximos de mim”) cuja
existência e proximidade servem de suporte a sua própria identidade pessoal. Cada indivíduo,
dentro de seu grupo parental, se sente como membro de outros grupos parentais diferentes do
seu e que por afinidade de crenças, costumes e tradições, constituem o seu grupo cultural e
determinam o seu conceito de nação, compondo assim, uma dimensão mais oceânica de sua
identidade individual.
Com isto queremos dizer que a questão da identidade (quem sou?, quem são os
outros?, quem gosta de mim?, de quem eu gosto?, qual o meu papel nisso tudo?) é,
provavelmente, o grande fator de equilíbrio que determina os comportamentos, seja no plano
individual ou no grupal, remetendo portanto à estrutura psicossocial de cada indivíduo e, por
conseqüência, à totalidade das relações sociais. O indivíduo não é uma ilha na sociedade. Pelo
contrário, ele está ligado a uma cadeia social, com superposição de identidades, de interesses
e de laços afetivos e culturais.
O indivíduo que abusa das drogas expressa, através do uso excessivo delas, a
necessidade de suprir-se desses vínculos essenciais da cadeia social, necessários que são ao
desenvolvimento da sua personalidade e ao seu equilíbrio no grupo social. O abuso de drogas
não é, portanto, um fenômeno meramente individual que encontre resposta adequada através
da prática médica, jurídica, policial ou religiosa. As posturas moralista, legal, científica ou
religiosa até hoje não conseguiram resultados satisfatórios e nem nunca conseguirão, pois as
formas de drogadição são múltiplas e suas raízes estão presas às próprias necessidades
humanas dentro da paisagem social.
Não são, as fórmulas “práticas”, os métodos “miraculosos” ou as idéias ou processos
“geniais”, capazes de responder ao fenômeno social da drogadição. A necessidade
insubstituível do homem de fugir, de vez em quando, da realidade que o cerca, é tão
importante quanto o ar que respira ou a água que bebe. Essa necessidade o diferencia da
máquina e dos objetos sem vida. É ela que mantém a possibilidade de equilibrar a relação do
concreto com o abstrato em harmonia. O abstrato e o concreto da existência humana precisam
de canais expressivos e consolidadores das duas partes, que na verdade são um “todo” que
harmoniza a vida mental e estimula os comportamentos ativos.
Ao longo da história da cultura humana esses dois componentes estão presentes e se
projetam invariavelmente sob as diferentes formas de conviver. Nas culturas primitivas essa
interligação continua ricamente presente nos ritos, mitos e tarefas do grupo, intrincando-se
nas relações, onde é impossível separar o mágico do real.
A desintegração da cultura na sociedade branca (perda cultural), conseguiu produzir o
magnata e o mendigo, a virgem e a prostituta, o atleta e o subnutrido, o intelectual e o
analfabeto, o abstêmio e o drogado. O uso adequado do tóxico numa sociedade equilibrada é
tão necessário quanto o vinho é necessário à missa. O combate ao tóxico é tão ilusório quanto
combater as miragens no deserto. A sociedade atual necessita reaprender a conviver com as
drogas, pois elas nunca irão desaparecer, como elementos da natureza que são.
Lembrando da expressão que diz: “a religião é o ópio do povo”, da mesma forma
poderíamos dizer: “a droga é necessária para os ritos e crenças de uma sociedade
culturalmente equilibrada”. Entre nós, os civilizados, parece que a ganância, o egoísmo e a
desconfiança são o ópio que nubla a consciência da sociedade dando-lhe a sensação de
progresso e desenvolvimento.
Pior que a drogadição são: fome e guerras, resultados do caos social. Somos obrigados
a rever a ordem social, suas instituições, valores e costumes. Estamos diante de um dilema: ou
mudamos ou continuamos o caminho para a autodestruição.
Concluindo, retornamos para a questão da perda cultural e da perda da identidade pessoal, que
talvez sejam o eixo único a ser repensado no caminho para o reequilíbrio das pessoas e das
sociedades. Se não for assim, os consultórios e clínicas continuarão recebendo vários tipos de
drogados: drogados em álcool, em trabalho, em religião, em dinheiro, ou seja, pessoas que
descarregam suas tensões reativas em substâncias, objetos ou atividades

CAPÍTULO XII



Comportamento Reativo e Lei: Admiração, Respeito, Autoridade e Infração
Já comentamos sobre a formação dos primeiros bandos de primatas, sobre sua
organização e importância para os indivíduos, sua evolução para grupos cada vez maiores e
mais socializados resultando na formação da cultura desses grupos e no papel, funções e
atribuições da família no interior deles.
Fomos tendo que admitir que, para o grupo social e o grupo familiar se manterem em
equilíbrio, necessário se tornou a criação de regras ou normas comuns que deveriam ser
admitidos e cumpridas por todos. Foi ficando cada vez mais consciente e habitual para os
membros do grupo, a necessidade da existência de regras, normas ou leis, que protegessem os
interesses dos indivíduos e regulassem os direitos e deveres de cada um e de todos do grupo.
Essa percepção humana, desde épocas muito remotas, possibilitou a vida social e a
emergência da cultura. Muitas sociedades, que hoje não mais existem, usaram esse
conhecimento e o foram transmitindo para os descendentes através da forma oral pelo fato de
não possuírem a forma escrita de comunicação.
Organizar essas informações e procedimentos para a vida social nunca foi uma tarefa
muito fácil. Estabelecer regras de convivência comportando várias situações sociais como
religiosidade, sexo, política, economia, hábitos e costumes, sempre foi muito difícil.
Após o conhecimento da escrita essas necessidades da organização social foram sendo
passadas para a pedra, a madeira, o papiro, até a descoberta do papel. Relembramos aqui
alguns exemplos desses procedimentos legais antigos como: o código de Hamurabi, a lei de
Talião, o Corão, os Evangelhos, etc.
Atualmente, conhecemos tantas produções escritas com as mesmas finalidades que,
para lê-las todas, teríamos que sobreviver a quatro gerações consecutivas. Das normas
internacionais, estaduais e municipais; de todas as instituições políticas, religiosas,
econômicas, científicas, esportivas e escolares, iríamos passar para uma verdadeira selva de
outras produções.
Podemos concluir que chegamos a uma situação-limite, com tal exagero e num
emaranhado de atribuições, que acabamos por nos revoltar e infringir desordenadamente
várias delas. É possível que parte do nosso comportamento reativo explique a nossa condição
atual de infratores. Parece que cada um de nós, nas circunstâncias atuais, se transformou num
ser infrator em potencial que, quando esgotado o seu limite, passa a expressar esse
comportamento para manifestar a sua insatisfação.
Na verdade, além de infratores em potencial, somos também hipócritas porque somos
favoráveis à preservação da Lei quando ela nos beneficia, e a infringi-la quando nos
prejudica. Temos sido individualistas e agimos como crianças egocêntricas.
Preservar ou mudar a Lei para que sirva igualmente para todos é um pensamento
adulto, equilibrado e sensato. Aliás, ser adulto não é apenas uma condição anatômica,
cronológica e sexual dos indivíduos. É sobretudo uma condição psicossocial, onde a
personalidade, formada e amadurecida, se projete para o coletivo com função e papel
definidos; onde ela, despojada dos traços infantis egocêntricos, se posicione para colaborar na
integração do modelo cultural que proporcionou a sua existência. O “estado adulto” só se
torna visível quando atua no campo social com toda a sua potencialidade criativa e
construtiva, voltada para o sentido coletivo da existência e convivência do grupo. Essa é a sua
principal característica: o desejo de viver e conviver em harmonia com o conjunto.
Quantas pessoas ainda pensam e agem dessa maneira? Quantas “personalidades anãs”,
“deficientes de caráter” e “pobres de espírito” são paridos e mantidos pela sociedade branca?
Você conhece algumas delas?
A perda de um modelo cultural harmônico e integrador produziu nas sociedades
brancas o aparecimento de um número excessivo de instituições políticas, religiosas, legais,
econômicas, dando-lhes a falsa idéia de organização, progresso e desenvolvimento. Os
resultados, porém, são claramente detectados no sofrimento do psiquismo dos indivíduos,
através das neuroses e psicoses, e na manifestação dos mais variados tipos de comportamento
reativo, responsáveis por todos os problemas conhecidos atualmente. Podemos comparar a
situação do mundo atual com a citação bíblica que fala sobre a construção, pelos antigos, da
Torre de Babel (Babel significa: confusão).
Entre os índios a Lei representa um acordo grupal, ao qual todos estão sujeitos a
aceitá-lo e cumpri-lo. O poder da lei não precisa estar escrito e nem de alguém que o ordene,
pois ela, e toda a sua força, reside na Tradição do Grupo, que é uma “situação impessoal”. O
“poder de prestígio” do chefe, do pajé ou de quaisquer dos líderes mais velhos se resume no
seu papel de representação simbólica apenas, sujeito e amarrado que está, ao cumprimento fiel
à Tradição do Grupo.
Começamos a compreender porque nas suas sociedades não existem instituições
separadas, com o objetivo de concentrar o poder político, econômico ou religioso. No início,
não conseguíamos entender porque um tuxaua, um pajé ou um líder de “família extensa” não
dava ordens. Nunca um índio dá ou recebe ordens.
Certa vez alguém perguntou a um chefe porque nunca dava ordens. Ele sorriu e
respondeu: “Não precisa, todos sabem o que devem fazer”. Nesse caso estamos diante de uma
sociedade sem Estado, auto-propelida, onde o comando ordem-obediência não é necessário.
Onde o poder de representação dos líderes lhes confere apenas o prestígio e ao mesmo tempo
lhes proíbe o exercício do poder de mandar, de exigir. A ordem emanada de qualquer
indivíduo jamais será obedecida porque se constituirá num insulto para o cidadão. Ora, qual
cidadão que tendo inscrito em sua consciência a tradição da cultura, teria a ousadia de se
afastar dela ? Seria o mesmo que perder sua identidade, sua segurança e seus direitos. Sentirse-
ia um corpo estranho ao grupo, um anormal, e teria que abandoná-lo.
A Lei-Tradição não ocupa um espaço exterior ao indivíduo, não está nas instituições
e nos códigos escritos. Está no interior de cada pessoa e daí se projeta para a exterioridade
social. A Lei reside na vontade e no desejo de cada um em preservar a Tradição herdada dos
ancestrais, única e milenar forma de identificar-se como membro do grupo. Grupo que
protege seus interesses, preserva seus direitos e lhe exige deveres de cidadão adulto integrado
à sua cultura.
A obrigação que todos têm (inclusive chefe, pajé e líderes) de trabalharem para
garantir o próprio sustento, lhes confere a posição de “patrão-operário” de si mesmos e do
grupo. O acordo de não-acumulação garante essa posição e evita a ociosidade e a exploração.
Trabalhar todo dia para não acumular nunca permite não só a possibilidade de
exercícios físicos diários, mas, sobretudo, evita a formação de classes sociais e de privilégios.
“Todos são iguais perante a Lei”, não falam, mas sabem. Essa consciência de “ser-igual-aooutro”
no grupo, perpassa o plano político, o econômico e atinge o religioso.
As múltiplas entidades que compõem seu mundo religioso não precisam de templos ou
evangelhos porque, como eles, são livres para se manifestar e não gostam de obedecer a um
único Deus. As entidades são seres imaginários da floresta que, embora misteriosamente
invisíveis, pertencem também ao mundo da cultura e não podem se desligar do grupo. São
livres para questionar, perturbar ou ajudar a vida terrena mas, de certa forma, também estão
sujeitos ao acordo da Tradição.
Mais uma vez nossa metade branca é obrigada a admitir que a violência dos chefes de
Estado, chefes de Polícia, chefes de família, não são, entre nós, hábitos e costumes herdados
dos indígenas. Talvez sejam fruto do nosso autoritarismo copiado dos europeus, produto ou
subproduto da civilização. Condição que tentamos desesperadamente substituir pelo uso da
Tradição, instituição que já não mais possuímos. Por isso, tentamos preservar as instituições
que conhecemos, na esperança de sustentar o equilíbrio na nossa sociedade.
A reprodução desordenada de leis, de crenças e de outros recursos civilizados,
reproduziram-se como um câncer, são a nossa forma alucinada de desejar a reintegração ao
tempo da cultura e da tradição. Suas metástases são, aqui e ali, novos focos de violência
porque determinam o poder de poucos sobre a perda de poder de muitos. Ninguém mais
acredita nas instituições civilizadas. Nem os “meninos de rua” que, após sofrerem massacres,
preferem voltar a compor o seu grupo na rua, o espaço de liberdade que os protege do Estado
e de suas instituições. “Antes só do que mal acompanhado” - diz a sabedoria popular.
Estamos começando a compreender porque a Palavra é detentora de grande fascínio
entre os índios. Entre eles, a Palavra-Lei-Tradição (as palavras proferidas pelo cacique todo
dia no centro da aldeia e pelo pajé nos rituais) é diferente da palavra comum usada por todos.
Da mesma forma e por analogia, entre os brancos, o valor da palavra, se torna mais
perceptível nas frases: “Homem de palavra”, “Palavra de Deus”, “Para um bom entendedor
meia palavra basta” ou “Letra da Lei”.
Só o chefe indígena (para lembrar a tradição terrena) e o pajé (para lembrar a tradição
espiritual) são os detentores do prestígio e do poder de uso da Palavra-Lei-Tradição. Ao
mesmo tempo lhes é negado (e a todos) o uso da Palavra-Ordem-Obediência. O mistério,
exótico e apenas aparente, desses costumes nos mostra a sabedoria contida no seu cerne.
No primeiro caso, a Palavra-Lei-Tradição representando a coesão, união e harmonia,
isto é, a ausência de poder de uns sobre os outros no grupo. Em última análise, a ausência da
violência, da marginalidade e da miséria pela inexistência de um poder centralizado e
coercitivo. No segundo caso, a negação do uso da Palavra-Ordem-Obediência, para não
permitir o uso do poder, da violência e da diferença social e antinatural das classes sociais.
O prestígio da representação social entre os índios (chefe, pajé ou líder) proíbe o uso
do poder e a faculdade de dar ordens, assegurando assim a liberdade do grupo. A palavra
comum é de todos e, assume conotação sagrada e de prestígio, quando empregada por
representantes que apenas podem invocá-la para lembrar a Tradição.
Qualquer líder para manter o prestígio e evitar a destituição sumária terá que se
submeter ao grupo que lhe impõe três condições essenciais:
ë Terá que ser generoso
ë Bom orador
ë Fazedor de paz (diplomata)
Não possui mandato nem tem direito a bens materiais. Não pode dar ordens. Só recebe
o voto de confiança do grupo se mostrar todo dia, e até a morte ou afastamento, a sua
competência nessas funções. Deixa de ser considerado líder quando perder a confiança do seu
povo, que pode ocorrer de maneira bastante humilhante.
Aceitar a liderança obrigando-o à generosidade significa condená-lo à pobreza
permanente. Ceder-lhe o privilégio do uso da Palavra-Lei-Tradição obriga-o à função de
“mídia” dos valores, costumes, leis e religiosidade grupal. Em síntese: os líderes se tornam
escravos das necessidades do grupo, que por dever de tradição lhe empresta o prestígio da
palavra e lhe rouba o poder, evitando a violência e garantindo a harmonia.
Nós, os civilizados, cultuamos o Deus-Pai-Todopoderoso, aceitamos a força e o poder
do Estado e dos seus líderes (chamamos a isso de Democracia) e criticamos com freqüência as
nossas instituições. Eles (os índios) talvez pela aprendizagem milenar da natureza humana,
subjugaram o poder e a violência, negando-lhes o espaço exterior da instituição. Mantiveram
a força e a liberdade dentro de si mesmos para poderem obedecer à Tradição.
Pais não dão ordens a filhos, súditos não obedecem a líderes, ninguém está sujeito a
pecado, porque Céu e Inferno não existem e, portanto, não podem ser utilizados por suas
entidades espirituais como expedientes de submissão. Resumindo: compreendemos que a
ausência de instituições exteriorizadas no caso deles e a e existência de instituições
exteriorizadas e concretas no nosso caso, explicam e compõem um só fenômeno, porém com
sinais invertidos.
Entre eles não é necessário possuir escrita, dinheiro, propriedades privadas e
instituições organizadas, isto é, formas exteriores de organização social. Talvez essas
estruturas estejam sintetizadas no seu psiquismo, no inconsciente coletivo do grupo. Essas
regras inscritas na cabeça de todos são capazes de assegurar o equilíbrio do modelo cultural.
Não haveria necessidade, então, de tê-las concretamente ou de criá-las artificialmente, pois
não teriam função e importância para a vida do grupo.
No nosso caso civilizado, com a perda do modelo cultural integrado e seguro,
precisamos ter tudo escrito, institucionalizado, para nos sentirmos mais protegidos e
confiantes. Uma tentativa de organizar pelo lado de fora o que não se consegue organizar pelo
lado de dentro do psiquismo.
Nesse caso o comportamento reativo dos civilizados poderá estar representando um
alto grau de desconfiança e inadaptação na convivência entre os homens civilizados, uma
deterioração da sua organização social e uma reação contínua aos efeitos que ela proporciona
aos que vivem e convivem dentro dela. Aprendemos que cada cultura cria seus problemas,
suas dúvidas e suas soluções. Cada uma terá que resolver essa questão por si própria.
Os primeiros cronistas portugueses do século XV, quando da invasão do Brasil, diziam
que os índios brasileiros eram pessoas “sem fé, sem lei, sem rei. Pareciam mais animais do
que gente”. Os portugueses gostavam de sentir medo do seu Deus, do seu Rei e das suas leis?
E os degredados, porque já existiam naquela época ? Teriam sido os precursores dos
infratores atuais ?
A verdadeira Autoridade é filha do “respeito ao outro”, que é filho da Admiração; da
verdadeira admiração por quem não precisa usar o poder e a violência da coerção. O bom
caráter da Autoridade constrói o Respeito, que alimenta a admiração, que admira o bom
caráter da Autoridade. É preciso dizer que o autoritarismo (autoridade violenta e punitiva)
destrói a admiração e suprime a autoridade. Todo déspota, pela falta de autoridade que
percebe em si mesmo, realimenta a opressão e recebe como resposta, mais cedo ou mais tarde,
a reação infratora dos oprimidos.
Entre os índios a Autoridade é a Tradição. Seus líderes são os representantes
transitórios dessa autoridade tradicional, mas não serão respeitados se derem ordens.
Enquanto o nosso patrimônio cultural se desintegra gradativamente, levando para o
ralo o que sobrou dos nossos sentimentos, princípios e valores, precisamos procurar formas
verdadeiras de resgatar nossa integridade econômica, social e religiosa. Queremos viver e
conviver num mundo livre, onde possamos ser os senhores de nós mesmos e os súditos de
uma Nova Tradição (pode-se ler: Nova Ordem Social).
Certa vez um xamã (pajé), sabendo que havia um médico de brancos na aldeia,
perguntou como ele fazia para reintegrar os espíritos (curar as doenças) nos corpos das
pessoas. Na ocasião o médico de brancos não soube responder a sua pergunta e as explicações
que tentou dar, certamente o pajé não compreendeu. O médico de brancos não ficou satisfeito
com os seus próprios esclarecimentos e ficou pensando se o pajé o havia considerado um
xamã de quinta categoria que não conhece rituais, não sabe dançar e cantar e nem mesmo usar
plantas medicinais e conhecimentos mágicos para entrar em contato com o mundo dos
espíritos. Se o médico de brancos o encontrasse hoje, teria melhores explicações para lhe dar.
Diria que os brancos só conseguem encontrar remédios que atuam no corpo. Que ainda não
conhecem os remédios do espírito, porque não se reconhecem como pessoas iguais perante à
tradição que já não possuem.
Diria mais: que a convivência entre pais, filhos, parentes e amigos na sociedade branca
foi contaminada por alguma magia estranha que altera esses vínculos; que reconhece que os
maus espíritos da violência, da fome e da injustiça, ocuparam sua floresta e estão afugentando
os bons espíritos da paz, da solidariedade e da esperança. E que os xamãs brancos não sabem
lidar com isso, e que entre eles há muitos xamãs falsos e mentirosos. Que o seu povo anda
muito desconfiado e por isso constrói muitos templos e muitas leis para tentar encontrar novos
caminhos. Que é possível que um dia encontre uma forma melhor de viver e conviver com os
bons espíritos da sua floresta. Assim, com eles, poderá se livrar das doenças do corpo e da
alma e poderá erguer nas suas terras um mundo onde a convivência se construa pelo amor,
pela admiração, pelo respeito mútuo e pela justiça. Onde os seus líderes possam aprender que
a verdadeira autoridade não se sustenta numa pessoa só ou num Estado Nacional, instituição
que ocupa o Poder para manter a violência e suprimir a liberdade de todos.

Equilíbrio e Desequilíbrio na Cultura
(RELATOS E SIGNIFICADOS DE COMPORTAMENTOS ATIVOS)

Sentimento e Gesto
Desde o início procuramos mostrar que as distorções em nosso modo de viver e
conviver atingem e alteram a Organização Social, a Família e o Indivíduo. Dissemos que
esses três planos da convivência estão interligados e se influenciam mutuamente. Se
aceitarmos que o indivíduo é a unidade de qualquer grupo social, teremos que aceitar que seu
comportamento é o motor das relações sociais e que seu psiquismo é o ponto de origem onde
tudo se inicia.
Quando falamos em mimetismo psicossocial queremos dizer que as pessoas, num
mundo cheio de mentiras e falsidades, procuram se defender mentindo, fraudando, retendo e
camuflando seus sentimentos, princípios e valores. Suas emoções! Num mundo onde as
emoções não podem fluir sem medo, o psiquismo se oprime e o comportamento se altera.
Também dissemos que todas as lembranças e experiências pelas quais passamos na
vida necessitam de um processo de emotização para serem registradas e organizadas na
mente. Esse é um fator indispensável para que haja organização, integração e equilíbrio no
mundo mental. É tão importante a emoção, que matamos, cometemos suicídio, amamos,
criamos, construímos ou destruímos movidos por essa força. Um mundo sem emoção seria o
tédio total, o mundo das máquinas e robôs! Seria a morte da alma.
Quando falamos sobre doença e comportamento queremos dizer que o indivíduo é
acusado de ser doente mental ou ter qualquer comportamento anormal, sem avaliarmos que
ele sempre pertenceu a uma família e a uma sociedade e que sofreu fortes influências desses
dois meios durante toda a sua vida. Ora, se isso é verdade, temos que admitir que seu
psiquismo é formado sob a força dessas influências. Que a cultura que o influenciou e o modo
como foi tratado no seu grupo familiar pesará fortemente sobre a qualidade dos seus
sentimentos, princípios e valores, permitindo ou não que se expresse livremente ou que
reprima intensamente suas emoções.
Essas variações traumáticas podem alterar seu equilíbrio psíquico, o que será mostrado
no seu comportamento, mais cedo ou mais tarde. Freqüentemente, mais tarde. Como sair
desse dilema? Tratando (remendando) o indivíduo, ou alterando os valores da cultura e da
família? As pessoas querem mudar? Uma coisa é certa: o psiquismo continuará registrando as
experiências do mesmo modo, como já vem acontecendo há milhares de anos.
Quando falamos dos índios só queremos mostrar comparativamente como um modelo
cultural bem constituído pode facilitar um bom equilíbrio psíquico e, conseqüentemente, uma
convivência mais harmoniosa e equilibrada. Ao visitarmos outras culturas diferentes da nossa,
estamos tão embriagados com os nossos costumes e valores, que geralmente não
compreendemos os deles.
Dissemos que o comportamento ativo é todo comportamento humano positivo e
construtivo, que produz apenas harmonia e equilíbrio interno (no psiquismo) e externo (na
família e no ambiente) e que contém altos níveis de sentimentos, princípios e valores
saudáveis nas pessoa que o expressam. A lógica desse comportamento reside
simultaneamente na sensação de bem estar do indivíduo e do grupo. Quando uma dessas
instâncias sofre alterações e é atingida por mudanças não aceitas pelo bom senso e pelo
consenso, iniciam-se processos reativos nos indivíduos que os transmitem para o plano da
convivência, gerando conflitos e produzindo uma desorganização nas normas de conduta
vigentes até então. Concluindo, poderíamos dizer que “regras justas e aceitáveis de
convivência determinam o equilíbrio físico e mental”. Nas comunidades naturais a
compreensão dessas regras é tão clara que determina um comportamento quase automático,
inscrito fortemente na consciência de cada membro, produzindo os costumes (Tradição) e
determinando a estabilidade da vida social (Eixo Cultural). Vejamos como isso acontece
através de fatos reais:

Destrutividade
Um fato ocorrido em uma sociedade natural (aldeia indígena) nos mostra claramente
como esse grupo lida com a destrutividade humana. Vamos ao relato:
Quebrando Panelas
“Uma índia fazia panelas de barro à porta de sua oca. Eram enfeitadas de um lado com
cabeça e bico de pássaro e de outro lado com um rabinho. Seu filho de três anos assistia esse
trabalho e, logo que sua mãe terminava uma panela, ele imediatamente quebrava a cabeça e o
rabinho. Ao terminar outra panela ela repetia o mesmo gesto e seu filho tornava a quebrar a
cabeça e o rabinho. Isso já tinha se repetido tantas vezes que o missionário branco resolveu
perguntar: - Por quê você não faz só o corpo da panela e deixa para colocar a cabeça e o
rabinho quando ele não estiver presente? Ela respondeu calmamente: - Porque ele gosta de
quebrar panelas com as cabeças e rabinhos!
Comentário:
Todo ser humano nasce com potencial destrutivo. Toda criança é naturalmente
destrutiva: morde, bate, quebra. Só aprende a construir a partir de experiências primitivamente
destrutivas. Depois que atua destruindo, passa para uma outra fase de socialização, da
agressão: aprende a reparar e construir. É possível que a índia já soubesse intuitivamente
sobre essa evolução natural dos instintos humanos e deixasse o filho completar naturalmente
essa primeira fase. Como sua cultura valoriza pouco o objeto material, ela poderia estar
valorizando o desenvolvimento normal do filho, mesmo sem saber dessas questões da
psicologia. Nessas sociedades é comum ver-se crianças de cinco a dez anos ajudando suas
mães a enfeitar suas panelas, a tecer cestos, fazer tarefas domésticas, sem serem solicitadas.

Gratidão
Neste relato podemos observar o grau de profundidade a que pode chegar o sentimento
de gratidão e o simbolismo contido nos presentes ofertados a alguém.
O Ovo de Pato
Na Unidade Sanitária estava chegando o sexto índio contaminado pela tuberculose.
Resolvemos visitá-los num fim de semana para examinar os mais de oitenta índios da aldeia
Nazaré na cabeceira do rio Marau, afluente do rio Maués no Estado do Amazonas. Eram
semi-aculturados, em contato com missionários na aldeia a alguns anos.
Descemos da canoa e já encontramos tudo organizado para começar a trabalhar.
Auscultamos todos, e os que não sabiam falar português respondiam para um missionário ou
para o chefe que traduzia para nós. No dia seguinte o trabalho continuou e só a tarde foi
concluído.
Um missionário nos avisou que o tuxaua Paulo (nome do líder da aldeia) queria que
fossemos conhecer sua família e agradecer pelos serviços que prestamos à sua gente. Pediu
que tirássemos fotografias da sua família e no final, num gesto cerimonial, nos deu de
presente um bonito ovo de pato selvagem que havia coletado há alguns dias. A principio não
entendemos nada. O que tinha a ver um ovo de pato com os serviços que fizemos?
Procuramos o missionário e pedimos que explicasse aquilo. Ele arregalou os olhos e nos
perguntou: - Ele deu este presente? – Sim! – respondemos. Os seus olhos azuis brilharam e ele
falou: - Mas essa é a maior honraria que um branco é capaz de ganhar dessa gente. Todo
mundo vai ficar sabendo disso.
Comentário:
O missionário falou que naquela época do ano as chuvas diminuíam de intensidade e,
por conseqüência, os rios diminuíam os seus volumes d’água. Os peixes desciam para rios
mais volumosos e a caça procurava outros lugares para se abastecer de água e comida. Tudo
ficava mais difícil para caçar e pescar e os esforços para conseguir comida aumentavam. O
costume tradicional era coletar e armazenar ovos de aves e répteis (que se conservavam por
muitos dias) para preservar a reserva alimentar da tribo. Havia um código ético de que as
crianças não podiam ficar com fome nesses tempos de escassez. Bom, coletar ovos seria uma
forma de garantir comida às crianças, pelo menos. Reserva alimentar de proteínas para as
crianças, naquela tribo, era uma questão de honra. Ora, tirar da reserva alimentar dos filhos
para oferecer presentes, principalmente para brancos, poderia ser no mínimo um grande
privilégio.
Ficamos emocionados quando compreendemos isso, mas mesmo assim, não
conseguimos perceber totalmente o profundo gesto daquela tribo. Depois de algum tempo
entendemos que fôramos agraciados com um ato de profunda gratidão. Nunca alguém
propiciou tamanha felicidade por um trabalho que fazíamos mecanicamente. Na nossa
civilização ninguém valoriza esses gestos. Tivemos o cuidado de levar esse ovo prá casa e
comê-lo com grande satisfação. Se o tivéssemos esquecido na aldeia teríamos cometido uma
grande ofensa para com aquele povo tão generoso.
Há algum tempo atrás ficou provada a extrema necessidade que as crianças possuem
pela aquisição de proteínas nessa fase de crescimento. Essa necessidade está voltada para a
construção das estruturas do corpo e do cérebro.

Ritual de gratidão
Esse relato nos mostra a importância que é dada a um indivíduo no grupo, e como se
expressa o sentimento de gratidão manifestado pelo grupo como um organismo inteiro
(identidade grupal).
O Presente dos Colares
Desses tratamentos que fizemos em índios, o caso mais agudo foi o de uma índia de
quinze anos. Chegou na Unidade Sanitária um caco quase sem vida. Estava esquelética.
Pesava menos do que a maca que a conduzia. Era um caso grave e a internamos na própria
Unidade, coisa que não era permitida pelo regulamento. Clinicamente era um caso de
tuberculose, mas, dos três exames de escarro feitos, todos foram negativos. Lembramos da
aula de um grande professor que nos ensinou que existem casos de “tuberculose fechada”,
aquelas que não mostram positividade nos exames de escarro. Acreditamos no diagnóstico e,
quebrando as regras da FSESP (Fundação Serviços de Saúde Pública) iniciamos o tratamento.
Tudo indicava que o raciocínio estava certo.
Três meses depois a índia tinha cinco quilos a mais de peso e recuperou seu peso
normal aos seis meses. Respondia até mais do que o esperado em termos de recuperação.
Estávamos felizes e a visitávamos duas vezes por semana na casa do pastor Ronald, onde ela
estava hospedada. Ela foi liberada para continuar o tratamento por mais seis meses na sua
tribo sob coordenação do mesmo pastor que a hospedara. Ficamos tranqüilos e continuamos o
trabalho na Unidade como de rotina. Meses depois ela voltava para novos exames e, já tendo
completado o tratamento, recebeu alta por cura completa.
Certa tarde a auxiliar de enfermagem nos informou, já no final do expediente, que
havia uma comitiva que queria conversar conosco. Estávamos cansados, mas pedimos que
entrassem. Eram quinze pessoas: a índia, seu pai, um irmão, um tio, uma tia, o chefe da tribo,
o pajé, outros parentes e o pastor Ronald e seus familiares. Ficamos surpresos. O pastor
Ronald falou algumas palavras na língua deles e as traduziu, em seguida falou o pai, depois o
pajé e por último o tuxaua. De olhos arregalados ouvíamos tudo e em seguida cantaram e
falaram palavras que só foram traduzidas depois. O pai, o chefe e o pajé colocaram, cada um
por sua vez, no nosso pescoço, três colares feitos pela índia que havia sido tratada.
Cumprimentos de todos e o ritual se encerrou.
Comentário:
Fomos homenageados pela índia, seus parentes e pela tribo com colares que
significavam mais ou menos: “cidadão do povo”, algo parecido com “persona grata” ou
“guerreiro de confiança”, tradução do pastor. Para nós, até hoje, nenhuma quantia em dinheiro
tem mais valor do que essa honraria. Compreendemos que nesses grupos humanos o valor de
uma pessoa é tão grande que pode mobilizar todo o grupo, seja para a guerra, seja para um
gesto de gratidão.

Coletivismo e assertividade
Neste relato podemos observar dois costumes comuns entre grupos indígenas: o senso
coletivo e o sentimento de sinceridade expressiva (sintonia, assertividade).

A Farra de Café
Costumávamos caçar e pescar naquela época. Um dos companheiros de caçada era um
civilizado da cidade de Boa Vista-RR. Trabalhava numa borracharia e era um “mateiro”
(conhecedor da mata) muito experiente. Conhecia muito bem o lugar para onde estávamos
indo. Tinha o hábito de levar café e açúcar para um grupo indígena que conhecia há alguns
anos e que ficava a meio caminho do local da caçada. Falava um pouco a língua deles e os
respeitava muito.
Contou-me que ao receber o presente, seu amigo índio o entregara para sua mulher
que imediatamente convidou todos os outros índios para uma verdadeira festa. Como se
tratava de um quilo de café e dois de açúcar, eles ficavam bebendo até que todo o café e
açúcar acabasse. Poderiam entrar pela madrugada adentro bebendo café e conversando. Nunca
guardavam e sempre repartiam. O presente dado a um, era o presente para o grupo todo. Uma
questão de costume.
Certa vez convidou um rapaz da cidade para uma caçada e entraram na aldeia para
entregar o café e cumprimentar o amigo índio. O rapaz afastou-se um pouco e começou a
fazer gracinhas com índias que o rodearam para vê-lo de perto, pois era um desconhecido para
o grupo. Despediram-se e continuaram a caminhada. Na volta o rapaz pediu para que
entrassem de novo na aldeia, pois ele queria receber arcos e flechas de presente. O mateiro
falou para o índio que o rapaz queria arcos e flechas. O índio se retirou e logo voltou com dois
arcos e seis flechas muito bonitos e enfeitados com penas de pássaros. Falou para o mateiro: -
Isso é seu ! Para ele não daremos presentes e nem queremos receber. Ele não é amigo do
nosso povo. Ele é gente ruim...!
Comentário:
Os índios percebem com facilidade as intenções dos brancos que visitam as aldeias.
Guardam na memória os gestos e as palavras que conseguem entender. Cultivam a amizade,
mas não gostam de ser humilhados. Quando repelem uma amizade dificilmente mudam de
idéia depois. São simples e sinceros e falam o que sentem na frente das pessoas. Não possuem
o hábito de mentir ou falsear seus pensamentos e sentimentos.

Força do modelo cultural
Neste curto relato podemos observar a importância da qualidade de convivência em
uma cultura integrada.

A Volta
Há algum tempo atrás lemos a reportagem sobre um antropólogo americano que
casou-se com uma índia ianomâmi. A índia aceitou sair da aldeia e morar com ele nos EUA.
Após alguns anos de convivência com a civilização resolveu voltar para sua tribo. Deixou
dois filhos com o pai e retornou aos seus velhos costumes. Não se adaptou.
Comentário:
Não é fácil trocar um grupo humano integrado e solidário por uma “civilização” cheia
de problemas, onde as pessoas são tratadas de forma desumana.

Organização e hierarquia na distribuição do alimento
Neste relato podemos observar como os hábitos e costumes gerados pela tradição
funcionam na convivência em uma cultura integrada.
A Distribuição da Comida
Já estava começando a anoitecer. Estávamos sentados sobre um tronco em frente a
palhoça onde o missionário morava. Bem em frente, há uns trinta metros, havia um barracão
coberto de palha e sem paredes. Nele uma índia mantinha a fogueira acesa e de vez em
quando a alimentava com pedaços de galhos secos. O missionário dizia que ela estava
esperando seus parentes, homens, que tinham saído para caçar. Pediu para prestarmos atenção
sobre o modo de distribuição da comida naquela tribo. Segundo ele, havia um ritual bem
disciplinado sobre a hierarquia no ato de servir-se do alimento.
Já estava quase escuro quando um grupo de quatro índios entrou na área da aldeia com
duas grandes pacas penduradas nas mãos. Foram seguidos por crianças e jovens curiosos que
falavam e riam o tempo todo. Deixaram as pacas sobre uma esteira no barracão e se retiraram.
Mais duas mulheres se aproximaram e começaram a preparar as pacas para assar. Quando
tudo estava pronto as crianças se aproximaram e começaram a tirar pedaços do assado para
comer com beijú (espécie de pão feito de mandioca). Depois vieram os velhos seguidos das
mulheres. Por último chegaram os homens e comeram o que restava da caça. Não sobrou
nada.
Comentário:
O missionário explicou que, naquele grupo, as crianças tinham prioridade para servir-se, em
segundo lugar vinham os velhos, depois as mulheres e por último os homens. Comer
coletivamente obedecia a costumes muito antigos ensinados pelos mitos e pela tradição.
Todos conheciam esses critérios e não avançavam desordenadamente para comer.

Poligamia e monogamia
Neste relato podemos observar como hábitos e costumes tradicionais geram valores
que regulam a força dos instintos no grupo.

Uma ou mais Mulheres?
Em certos grupos indígenas qualquer homem pode ter mais de uma mulher, desde que
haja mulheres suficientes no grupo. Porém nem todos usam desse direito tradicional, muitos
recusam a possibilidade e preferem ter apenas uma companheira. Muitos civilizados devem
achar esse comportamento bastante estranho. Mas é assim que acontece em algumas tribos.
Foi perguntado a um índio adulto se ele não queria ter duas ou três mulheres. Sua
resposta foi simples: - Tem gente que gosta de ter mais de uma. Eu só gosto de ter uma.
Comentário:
Nesses grupos a maior humilhação que um guerreiro (homem adulto) pode sofrer se
baseia na sua incapacidade de conseguir alimento suficiente para sua família. Deixar filhos e
mulher com fome é muitas vezes pior do que ser chamado de homossexual, ladrão ou
covarde. Como em determinadas épocas do ano a caça e a pesca se tornam bem escassas, fica
muito difícil alimentar muitas bocas. Cair no ridículo perante todos do grupo seria o resultado
final dessa incompetência demonstrada pelo guerreiro.
Vamos raciocinar: Um guerreiro com sua mulher e dois filhos teria que alimentar
quatro bocas; se tivesse mais uma mulher e dois filhos, teria que alimentar sete bocas; se esse
número aumentasse o guerreiro não teria tempo para fazer mais nada e sua vida estaria restrita
a caçar e pescar grande parte de seu tempo. Não poderia mais conversar e divertir-se. Prover
com alimento suficiente sua família é uma questão de honra que um guerreiro deseja manter
sempre.

Acordo “de verdade”
Neste relato podemos compreender como a verdade e o acordo são valores de grande
importância em sociedades que não utilizam a fraude e a mentira como mediadores das
relações no grupo.
A lanterna quebrada
Numa aldeia, ás margens do rio Catrimân, nas florestas da serra Parima em Roraima
residia um grupo de índios Ianomâmi. Era um grupo recentemente contatado, andavam nus e
mantinham grande parte de sua cultura tradicional. Eram aproximadamente noventa índios. Lá
tinha sido instalada uma missão católica (Missão Catrimani) há pouco tempo. Os padres João
e Carlos moravam numa casa de madeira a cem metros da maloca. Entramos com uma equipe
de pesquisas para coletar sangue e material da garganta dos índios com o objetivo de
descobrir que tipo de vírus estava matando os índios de pneumonia em outros locais da
região.
Descemos do pequeno avião num campo de pouso todo de terra, a poucos metros da
casa dos padres. Logo ao descermos vieram algumas crianças para ver o avião e olhar
curiosamente para nós.
Um índio de aproximadamente trinta anos aproximou-se do padre João, que viajara
conosco, e falava insistentemente no seu dialeto mostrando uma lanterna velha sem pilha e

sem a tampa de trás. Não entendíamos nada, mas notamos um ar de preocupação no rosto do
padre.
Mais tarde nos contou: o índio havia trocado aquela lanterna velha com um homem
branco (peão de construtora de estradas) que estava caçando por aquelas bandas. Ele havia
dado em troca um porco-do-mato inteiro e mais alguns arcos e flechas. Disse ele que o branco
afirmara que aquele objeto fabricava luz e ele podia enxergar a noite. Depois o branco
mandaria as pilhas e a tampa de trás. Nunca cumpriu sua palavra e já tinha passado dois
meses. O índio estava querendo entender porque o homem branco não cumprira o que
prometeu e estava demorando tanto.
Comentário:
O padre João explicou para nós que naquele grupo eles não conheciam a mentira. No
ramo lingüistico deles não havia qualquer palavra referente a enganar, mentir, descumprir.
Não conheciam esse hábito civilizado e o padre estava em dúvida se deveria colocá-lo a par
da realidade branca, onde uma pessoa pode enganar a outra. Ele aprenderia esse costume novo
e o contaria para os outros índios, contaminando assim aquela cultura pura e sem maldades.
Mas um dia teria que falar sobre isso, pois a civilização estava se aproximando da aldeia com
a abertura da estrada.

Controle populacional
Neste relato podemos compreender como certas comunidades indígenas controlam
suas populações, tendo como base condições e fatores naturais atuando na lógica de
crescimento do grupo.
Poucos filhos
Um dia perguntamos ao padre João porque uma família indígena tinha sempre uma
média baixa de filhos. Eram sempre dois ou três os filhos de um casal. Ele citou as razões
ligadas ao número de bocas a alimentar e falou sobre um possível uso de anticoncepcionais
naturais pelas mulheres. Mas não tinha certeza dessa utilização de anticoncepcionais. Falou
apenas que as mulheres se reuniam periodicamente dentro da mata e parece que faziam chás
com uma espécie de batatinha semelhante ao gengibre. Não sabia dizer para que servia, e se
aquilo tinha alguma coisa a ver com o controle da natalidade. Nessas reuniões a presença dos
homens não era permitida pela tradição.
Comentário:
Atualmente o controle populacional é função dos governos. A forma de distribuição
dos bens produzidos determina quem pode e quem não pode comer. Mas a reprodução é um
bem individual determinada pelo indivíduo. É possível que as famílias numerosas e a
superpopulação sejam reflexos da desorganização social entre brancos, uma espécie de
“compensação desviada” para garantir a sobrevivência.

Uso da etiqueta
Neste relato podemos perceber como, em grupos que adotam o princípio da verdade,
não são aceitas as convenções falsas utilizadas de forma generalizada e automática pelas
sociedades civilizadas.
Os Cumprimentos
Nessa mesma aldeia onde morava o padre João, após descermos do avião, nos
dirigimos para a casa dele. No alpendre já havia um pequeno grupo de índios e índias
reunidos. Ao entrar cumprimentamos a todos e nenhum gesto de retribuição foi feito.
Ninguém respondeu ao cumprimento. Os outros dois médicos também fizeram o mesmo e
nada aconteceu. Silêncio total.
O padre João, percebendo o nosso desapontamento, explicou: Eles aqui não conhecem
o nosso costume de cumprimentar. Alguns dias atrás falei a eles que iria trazer três amigos
que eram “pajés de brancos” (médicos); e que iriam furar o braço de todos para tirar sangue,
dar uma água para lavar a garganta e depois cuspir num pote (frasco de coleta). Isso iria servir
para que descobrissem a doença que estava matando outros índios. Eles aceitaram porque
acreditam em mim.
Entre eles, a palavra “amigo” tem valor real. Amigo é amigo, inimigo é inimigo.
Como não se mente, tudo o que é dito é compreendido como verdade inquestionável. Falou
que podíamos olhar a vontade para o corpo nu deles, pois, para eles, eles não se sentiam nus.
Eles também não se sentiam constrangidos em olhar para nós, chegar bem perto e até nos
tocar. Eles não reprimem a sua curiosidade e são muito autênticos.
Comentário:
Supomos que o cumprimento entre os civilizados, na grande maioria das vezes, é feito
de forma mecânica e obrigatória. Nós cumprimentamos sem sentirmos essa vontade, e para
ver como anda o humor da outra pessoa ou para nos sentirmos educados. Na verdade achamos
chato ter que cumprimentar sempre. Estamos sempre desconfiados em saber se somos aceitos
pelos outros ou não. Quase sempre cumprimentar é um gesto hipócrita.

Moral e nudez
Neste relato podemos perceber como, em grupos que adotam princípios morais
organizados, a nudez e a moral possuem regras diferentes das existentes nas sociedades
civilizadas.

O Cipó
O padre Carlos estava há pouco tempo na aldeia. Havia chegado da Itália e fora
encaminhado para trabalhar na missão Catrimani, para ajudar o padre João. Quando um ia à
cidade resolver questões de rotina, o outro ficava com os índios. Ainda estava aprendendo os
costumes do grupo.
Um grupo de índios composto de homens, mulheres e crianças tinha o hábito de descer
de tarde para o igarapé (pequeno afluente do rio), para tomar banho. Era uma festa, nadavam,
conversavam e se divertiam muito nessas horas. Nessa tarde, ao passarem em frente à casa
dos padres, convidaram o padre Carlos para descer com eles. O padre foi vestir seu calção e
os acompanhou pelo caminho que levava ao igarapé. No caminho, passando por um índio
jovem, o convidou para seguir o grupo. O índio fez um gesto negativo com a cabeça e parecia
encabulado. Vestia um calção vermelho e desbotado, produto de troca com um branco da
estrada. O padre se aproximou e perguntou por que ele não queria ir. Ele falou: - Estou sem
cipó !
Comentário:
Para esses índios a roupa do branco era tratada como simples ornamento, como se
fosse um colar ou pulseira. Estar vestido, para um homem da tribo, significava ter seu
prepúcio (pele que envolve a cabeça do pênis) amarrado por um cipó fino, levantado para
cima e amarrado em volta da cintura. Isso sim era estar vestido. O calção, embora encobrindo
seus genitais, não lhe dava a sensação de estar vestido. Seria uma falta de vergonha ir tomar
banho junto com o grupo daquele jeito. Ele preferia ficar assistindo os outros se divertirem
mas não quebraria a tradição. Estava se sentindo nu sem o cipó.

Humor
Este relato mostra como o ambiente (floresta) fornece substrato para um humor
analógico entre homem e animal expondo o homem ao ridículo quando este se comporta de
forma semelhante aos animais. Mostra também como a tensão entre os brancos pode produzir
tiques e gesticulações exageradas que podem expressar certa conduta ansiosa.
Risos na Canoa
Eram dez horas da manhã e os dois padres tinham de atravessar o rio para pegar
mantimentos que estavam do outro lado. Naquele trecho a correnteza era forte, o rio tinha
quase cem metros de largura e logo abaixo, a uns duzentos metros, havia uma cachoeira alta e
perigosa para quem não a conhecia. Pediram a dois índios fortes que o ajudassem a atravessar.
Cada qual com um remo, ocuparam a proa e a popa da canoa. Durante a travessia os
padres começaram a conversar em italiano e o padre Carlos entusiasmado, gesticulava muito.
Os índios achavam engraçada aquela conversa e começavam a rir, parando de remar.
A canoa se aproximava perigosamente da cachoeira logo abaixo. Voltavam a remar e
logo paravam para rir novamente. O padre João estava ficando preocupado e pediu para o
outro padre parar de falar e gesticular. Fizeram o transporte dos mantimentos sem problemas e
os índios só pararam de rir quando eles ficaram em silêncio. Durante a volta todos ficaram
calados.
Comentário:
A condição psicomotora do branco (excesso de palavras e de gestos) é diferente da dos
índios. Enquanto nós falamos e gesticulamos muito (expressão de ansiedade) eles só usam as
palavras e gestos suficientes para se comunicar (expressão de pouca ansiedade). Eles
comparam os brancos com os macacos ou micos que, segundo eles, tem gestos parecidos com
os dos brancos. O padre Carlos sabia disso e pediu para o outro padre se calar e encerrar a
gesticulação. Deu tudo certo.
Propriedade individual e coletiva
Uma das coisas que mais impressiona entre os índios é a obediência quase sagrada aos
seus costumes tradicionais. Os conceitos de: individual, coletivo, liberdade e verdade são
usados de forma tão coerente e flexível que chega a ser de difícil compreensão para nós.

O Arco
Um guerreiro saiu de sua casa e atravessou o terreno central da aldeia. Bem no meio
do caminho abaixou-se, deixou seu arco e flechas no chão e se embrenhou na mata. Poucos
minutos depois sua mulher fez o mesmo percurso e notou no chão o arco e flechas do marido.
Identificou e seguiu, sem parar, para o seu destino. Mais alguns minutos e o guerreiro voltou,
retomou suas armas do chão e penetrou na floresta.
Comentário:
A maioria das pessoas não teria notado qualquer importância nisso que acabamos de
narrar. Mas perguntamos: o que é que a maioria das mulheres branca faz quando encontram
um objeto do marido no chão?
Para certos grupos os objetos pessoais são de propriedade de uma pessoa apenas. Só
deixam de ser quando é autorizado, pelo proprietário, outro tipo de uso. Nenhuma outra
pessoa deve exercer qualquer tipo de poder sobre ele sem autorização, como por exemplo:
trocá-lo de lugar, pegar sem pedir, etc. Cada pessoa é o único detentor do poder sobre seu
objeto pessoal e quando essa pessoa morre, seus objetos são enterrados com o corpo, pois
nenhum objeto pode sobreviver ao seu dono. Os objetos usados em cerimoniais sagrados só
podem ser tocados por certas pessoas do grupo durante os rituais; encerrada a cerimônia ele
passa a ser um objeto qualquer que pode ser usado livremente e até servir de brinquedo para
as crianças. Em vários grupos o objeto é visto pelo seu valor utilitário (função) e não possui
valor comercial. O que uma pessoa faz ou deixa de fazer com seus objetos é de sua inteira
responsabilidade, e ninguém se sente com direito de emitir qualquer tipo de comentário.
Comentar seria invadir a privacidade e se intrometer na individualidade do proprietário, coisa
ridícula para eles.

Crime e tradição
Uma das questões mais difíceis de compreender entre os brancos é a diferença entre
crime e costume. Enquanto em certas sociedades naturais o infanticídio é consenso, nas
sociedades civilizadas passa a ser crime.

Infanticídio entre os ianomâmi
O missionário, falando sobre os costumes daquele grupo, contou que nos casos de
nascimento de gêmeos, o costume tradicional era sacrificar um deles, geralmente o menor e
mais fraco (seleção natural). Contou que uma índia grávida estava com a barriga muito
volumosa e entre as mulheres corria um comentário que ele não conseguia compreender. Os
comentários estavam ligados a um mito relacionado a esse tipo de ocorrência, aliás, bastante
raro, nesse grupo. A tradição dizia que a gravidez gemelar era uma interferência de espíritos
destrutivos da floresta que tencionavam introduzir no grupo, um espirito que teria como
objetivo promover distúrbios dentro da tribo. Como em outros grupos, eles acreditam que as
entidades espirituais são seres da floresta que geralmente estão sob forma de animais
(zoomorfismo) e que em certas circunstâncias (nos partos, por exemplo) assumem forma
humana para desorganizar a vida na tribo, produzindo atritos entre as pessoas. O indivíduo
menor e malformado é identificado como um desses seres. Confesso que a minha primeira
reação foi de repúdio ao fato. Muito depois consegui compreender que a força da tradição
torna-se mais forte para proteger o grupo em detrimento do indivíduo, o que, aliás, é um
princípio geral das comunidades naturais.
Comentário:
Um paradoxo visível nas sociedades civilizadas é a forma incompreensível de se
indignar com um caso desses, enquanto ficamos passivos diante de espancamento (e
abandono) de crianças e das mortes de jovens e adultos, por motivos fúteis, que já não nos
sensibilizam tanto hoje em dia. O que é crime, então?

Guerra e diplomacia
Conceitos de guerra e diplomacia entre sociedades naturais e reativas são tão
diferentes que chegam a confundir o raciocínio. Enquanto em certas sociedades naturais
guerra e diplomacia são sub-etapas de um conjunto de objetivos aceitos em consenso, nas
sociedades civilizadas são objetivos separados e decididos pela cúpula (governantes).
O ataque
Numa certa manhã, bem cedo, a aldeia foi atingida por uma saraivada de flechas
disparadas por um grupo ianomâmi vizinho. O missionário disse que não conseguia
compreender como os agressores, após o ataque, haviam fugido tão rapidamente levando
consigo duas mulheres, sem ferir qualquer dos membros do grupo. Comentários sobre o
ataque foram o assunto durante todo o dia. A tradição dizia que a dignidade do grupo havia
sido atingida e que um contra-ataque deveria vir em seguida, um consenso que teria como
objetivo devolver a autoconfiança dentro da tribo. O missionário, falando sobre os costumes
daquele grupo, contou que nos casos de conflito, o costume tradicional era responder primeiro
ao agravo, para depois fazer as pazes. Como em outras aldeias, eles acreditam que os grupos
possuem personalidade forte e que não podem ser desrespeitadas sob quaisquer
circunstâncias. Foi formado um conselho que identificou o inimigo pelas características das
flechas e marcou um contra-ataque para o dia seguinte. Após efetuarem as pinturas de guerra
e o preparo das armas, lançaram-se á ofensiva. Meses depois haviam marcado uma festa de
confraternização que resultou em troca de mulheres e objetos fabricados por cada grupo.
Conseguimos compreender que a força da tradição torna-se mais forte para proteger o grupo,
mas, ao mesmo tempo, valoriza a diplomacia como base de convivência intergrupal, o que,
aliás, facilita o comércio e evita a consangüineidade nas comunidades naturais.
Comentário:
O que mobiliza as guerras nas sociedades civilizadas são motivações tão mesquinhas e
dissociadas de interesses coletivos que as vítimas muitas vezes morrem sem saber porque (e
por quem) estão lutando.

Liberdade e individualidade
Pai, mãe, chefe ou pajé não ousam se intrometer na individualidade das crianças,
jovens ou adultos, pois desde pequenos aprendem que são responsáveis, cada um por si, sobre
seus atos, palavras e objetos. Sabem reconhecer com precisão os territórios do individual e do
coletivo para não serem motivo de risos dos outros. Cultivam a liberdade para se sentirem
livres, pois um cidadão ou cidadã adulta sabe escolher e sabe o que fazer; cultivam a verdade
para se sentirem autênticos consigo próprios e sintonizados com o grupo. Preservar o
individual, o coletivo, a liberdade e a verdade são hábitos tão automáticos que a discussão,
entre eles, sobre esses assuntos não teria qualquer sentido lógico.
Entre os grupos humanos naturais, o fator decisivo para a manutenção do equilíbrio
cultural pode ter sido: a escolha da figura humana como objeto principal no imaginário do
grupo. Os fatores de coesão podem ter sido: os sentimentos de solidariedade e generosidade;
os princípios individuais, como verdade e igualdade, os valores como justiça e respeito,
podem ter assegurado a evolução da identidade desses povos. A decisão política em não
permitir o uso do poder pelo homem, deslocando-o para uma esfera abstrata (tradição), pode
os ter livrado da decadência e do desaparecimento. Sabe-se que os ancestrais dos indígenas de
hoje chegaram ao território americano a mais de doze mil anos atrás.

* Os relatos acima citados foram baseados em fatos reais, coletados em diferentes
grupos indígenas da Amazônia, em tempos e circunstâncias diferentes, através de observação
pessoal do autor ou transmitidas por pessoas idôneas que conviveram nesses grupos por longo
tempo.