domingo, 7 de novembro de 2010

CAPÍTULO XII



Comportamento Reativo e Lei: Admiração, Respeito, Autoridade e Infração
Já comentamos sobre a formação dos primeiros bandos de primatas, sobre sua
organização e importância para os indivíduos, sua evolução para grupos cada vez maiores e
mais socializados resultando na formação da cultura desses grupos e no papel, funções e
atribuições da família no interior deles.
Fomos tendo que admitir que, para o grupo social e o grupo familiar se manterem em
equilíbrio, necessário se tornou a criação de regras ou normas comuns que deveriam ser
admitidos e cumpridas por todos. Foi ficando cada vez mais consciente e habitual para os
membros do grupo, a necessidade da existência de regras, normas ou leis, que protegessem os
interesses dos indivíduos e regulassem os direitos e deveres de cada um e de todos do grupo.
Essa percepção humana, desde épocas muito remotas, possibilitou a vida social e a
emergência da cultura. Muitas sociedades, que hoje não mais existem, usaram esse
conhecimento e o foram transmitindo para os descendentes através da forma oral pelo fato de
não possuírem a forma escrita de comunicação.
Organizar essas informações e procedimentos para a vida social nunca foi uma tarefa
muito fácil. Estabelecer regras de convivência comportando várias situações sociais como
religiosidade, sexo, política, economia, hábitos e costumes, sempre foi muito difícil.
Após o conhecimento da escrita essas necessidades da organização social foram sendo
passadas para a pedra, a madeira, o papiro, até a descoberta do papel. Relembramos aqui
alguns exemplos desses procedimentos legais antigos como: o código de Hamurabi, a lei de
Talião, o Corão, os Evangelhos, etc.
Atualmente, conhecemos tantas produções escritas com as mesmas finalidades que,
para lê-las todas, teríamos que sobreviver a quatro gerações consecutivas. Das normas
internacionais, estaduais e municipais; de todas as instituições políticas, religiosas,
econômicas, científicas, esportivas e escolares, iríamos passar para uma verdadeira selva de
outras produções.
Podemos concluir que chegamos a uma situação-limite, com tal exagero e num
emaranhado de atribuições, que acabamos por nos revoltar e infringir desordenadamente
várias delas. É possível que parte do nosso comportamento reativo explique a nossa condição
atual de infratores. Parece que cada um de nós, nas circunstâncias atuais, se transformou num
ser infrator em potencial que, quando esgotado o seu limite, passa a expressar esse
comportamento para manifestar a sua insatisfação.
Na verdade, além de infratores em potencial, somos também hipócritas porque somos
favoráveis à preservação da Lei quando ela nos beneficia, e a infringi-la quando nos
prejudica. Temos sido individualistas e agimos como crianças egocêntricas.
Preservar ou mudar a Lei para que sirva igualmente para todos é um pensamento
adulto, equilibrado e sensato. Aliás, ser adulto não é apenas uma condição anatômica,
cronológica e sexual dos indivíduos. É sobretudo uma condição psicossocial, onde a
personalidade, formada e amadurecida, se projete para o coletivo com função e papel
definidos; onde ela, despojada dos traços infantis egocêntricos, se posicione para colaborar na
integração do modelo cultural que proporcionou a sua existência. O “estado adulto” só se
torna visível quando atua no campo social com toda a sua potencialidade criativa e
construtiva, voltada para o sentido coletivo da existência e convivência do grupo. Essa é a sua
principal característica: o desejo de viver e conviver em harmonia com o conjunto.
Quantas pessoas ainda pensam e agem dessa maneira? Quantas “personalidades anãs”,
“deficientes de caráter” e “pobres de espírito” são paridos e mantidos pela sociedade branca?
Você conhece algumas delas?
A perda de um modelo cultural harmônico e integrador produziu nas sociedades
brancas o aparecimento de um número excessivo de instituições políticas, religiosas, legais,
econômicas, dando-lhes a falsa idéia de organização, progresso e desenvolvimento. Os
resultados, porém, são claramente detectados no sofrimento do psiquismo dos indivíduos,
através das neuroses e psicoses, e na manifestação dos mais variados tipos de comportamento
reativo, responsáveis por todos os problemas conhecidos atualmente. Podemos comparar a
situação do mundo atual com a citação bíblica que fala sobre a construção, pelos antigos, da
Torre de Babel (Babel significa: confusão).
Entre os índios a Lei representa um acordo grupal, ao qual todos estão sujeitos a
aceitá-lo e cumpri-lo. O poder da lei não precisa estar escrito e nem de alguém que o ordene,
pois ela, e toda a sua força, reside na Tradição do Grupo, que é uma “situação impessoal”. O
“poder de prestígio” do chefe, do pajé ou de quaisquer dos líderes mais velhos se resume no
seu papel de representação simbólica apenas, sujeito e amarrado que está, ao cumprimento fiel
à Tradição do Grupo.
Começamos a compreender porque nas suas sociedades não existem instituições
separadas, com o objetivo de concentrar o poder político, econômico ou religioso. No início,
não conseguíamos entender porque um tuxaua, um pajé ou um líder de “família extensa” não
dava ordens. Nunca um índio dá ou recebe ordens.
Certa vez alguém perguntou a um chefe porque nunca dava ordens. Ele sorriu e
respondeu: “Não precisa, todos sabem o que devem fazer”. Nesse caso estamos diante de uma
sociedade sem Estado, auto-propelida, onde o comando ordem-obediência não é necessário.
Onde o poder de representação dos líderes lhes confere apenas o prestígio e ao mesmo tempo
lhes proíbe o exercício do poder de mandar, de exigir. A ordem emanada de qualquer
indivíduo jamais será obedecida porque se constituirá num insulto para o cidadão. Ora, qual
cidadão que tendo inscrito em sua consciência a tradição da cultura, teria a ousadia de se
afastar dela ? Seria o mesmo que perder sua identidade, sua segurança e seus direitos. Sentirse-
ia um corpo estranho ao grupo, um anormal, e teria que abandoná-lo.
A Lei-Tradição não ocupa um espaço exterior ao indivíduo, não está nas instituições
e nos códigos escritos. Está no interior de cada pessoa e daí se projeta para a exterioridade
social. A Lei reside na vontade e no desejo de cada um em preservar a Tradição herdada dos
ancestrais, única e milenar forma de identificar-se como membro do grupo. Grupo que
protege seus interesses, preserva seus direitos e lhe exige deveres de cidadão adulto integrado
à sua cultura.
A obrigação que todos têm (inclusive chefe, pajé e líderes) de trabalharem para
garantir o próprio sustento, lhes confere a posição de “patrão-operário” de si mesmos e do
grupo. O acordo de não-acumulação garante essa posição e evita a ociosidade e a exploração.
Trabalhar todo dia para não acumular nunca permite não só a possibilidade de
exercícios físicos diários, mas, sobretudo, evita a formação de classes sociais e de privilégios.
“Todos são iguais perante a Lei”, não falam, mas sabem. Essa consciência de “ser-igual-aooutro”
no grupo, perpassa o plano político, o econômico e atinge o religioso.
As múltiplas entidades que compõem seu mundo religioso não precisam de templos ou
evangelhos porque, como eles, são livres para se manifestar e não gostam de obedecer a um
único Deus. As entidades são seres imaginários da floresta que, embora misteriosamente
invisíveis, pertencem também ao mundo da cultura e não podem se desligar do grupo. São
livres para questionar, perturbar ou ajudar a vida terrena mas, de certa forma, também estão
sujeitos ao acordo da Tradição.
Mais uma vez nossa metade branca é obrigada a admitir que a violência dos chefes de
Estado, chefes de Polícia, chefes de família, não são, entre nós, hábitos e costumes herdados
dos indígenas. Talvez sejam fruto do nosso autoritarismo copiado dos europeus, produto ou
subproduto da civilização. Condição que tentamos desesperadamente substituir pelo uso da
Tradição, instituição que já não mais possuímos. Por isso, tentamos preservar as instituições
que conhecemos, na esperança de sustentar o equilíbrio na nossa sociedade.
A reprodução desordenada de leis, de crenças e de outros recursos civilizados,
reproduziram-se como um câncer, são a nossa forma alucinada de desejar a reintegração ao
tempo da cultura e da tradição. Suas metástases são, aqui e ali, novos focos de violência
porque determinam o poder de poucos sobre a perda de poder de muitos. Ninguém mais
acredita nas instituições civilizadas. Nem os “meninos de rua” que, após sofrerem massacres,
preferem voltar a compor o seu grupo na rua, o espaço de liberdade que os protege do Estado
e de suas instituições. “Antes só do que mal acompanhado” - diz a sabedoria popular.
Estamos começando a compreender porque a Palavra é detentora de grande fascínio
entre os índios. Entre eles, a Palavra-Lei-Tradição (as palavras proferidas pelo cacique todo
dia no centro da aldeia e pelo pajé nos rituais) é diferente da palavra comum usada por todos.
Da mesma forma e por analogia, entre os brancos, o valor da palavra, se torna mais
perceptível nas frases: “Homem de palavra”, “Palavra de Deus”, “Para um bom entendedor
meia palavra basta” ou “Letra da Lei”.
Só o chefe indígena (para lembrar a tradição terrena) e o pajé (para lembrar a tradição
espiritual) são os detentores do prestígio e do poder de uso da Palavra-Lei-Tradição. Ao
mesmo tempo lhes é negado (e a todos) o uso da Palavra-Ordem-Obediência. O mistério,
exótico e apenas aparente, desses costumes nos mostra a sabedoria contida no seu cerne.
No primeiro caso, a Palavra-Lei-Tradição representando a coesão, união e harmonia,
isto é, a ausência de poder de uns sobre os outros no grupo. Em última análise, a ausência da
violência, da marginalidade e da miséria pela inexistência de um poder centralizado e
coercitivo. No segundo caso, a negação do uso da Palavra-Ordem-Obediência, para não
permitir o uso do poder, da violência e da diferença social e antinatural das classes sociais.
O prestígio da representação social entre os índios (chefe, pajé ou líder) proíbe o uso
do poder e a faculdade de dar ordens, assegurando assim a liberdade do grupo. A palavra
comum é de todos e, assume conotação sagrada e de prestígio, quando empregada por
representantes que apenas podem invocá-la para lembrar a Tradição.
Qualquer líder para manter o prestígio e evitar a destituição sumária terá que se
submeter ao grupo que lhe impõe três condições essenciais:
ë Terá que ser generoso
ë Bom orador
ë Fazedor de paz (diplomata)
Não possui mandato nem tem direito a bens materiais. Não pode dar ordens. Só recebe
o voto de confiança do grupo se mostrar todo dia, e até a morte ou afastamento, a sua
competência nessas funções. Deixa de ser considerado líder quando perder a confiança do seu
povo, que pode ocorrer de maneira bastante humilhante.
Aceitar a liderança obrigando-o à generosidade significa condená-lo à pobreza
permanente. Ceder-lhe o privilégio do uso da Palavra-Lei-Tradição obriga-o à função de
“mídia” dos valores, costumes, leis e religiosidade grupal. Em síntese: os líderes se tornam
escravos das necessidades do grupo, que por dever de tradição lhe empresta o prestígio da
palavra e lhe rouba o poder, evitando a violência e garantindo a harmonia.
Nós, os civilizados, cultuamos o Deus-Pai-Todopoderoso, aceitamos a força e o poder
do Estado e dos seus líderes (chamamos a isso de Democracia) e criticamos com freqüência as
nossas instituições. Eles (os índios) talvez pela aprendizagem milenar da natureza humana,
subjugaram o poder e a violência, negando-lhes o espaço exterior da instituição. Mantiveram
a força e a liberdade dentro de si mesmos para poderem obedecer à Tradição.
Pais não dão ordens a filhos, súditos não obedecem a líderes, ninguém está sujeito a
pecado, porque Céu e Inferno não existem e, portanto, não podem ser utilizados por suas
entidades espirituais como expedientes de submissão. Resumindo: compreendemos que a
ausência de instituições exteriorizadas no caso deles e a e existência de instituições
exteriorizadas e concretas no nosso caso, explicam e compõem um só fenômeno, porém com
sinais invertidos.
Entre eles não é necessário possuir escrita, dinheiro, propriedades privadas e
instituições organizadas, isto é, formas exteriores de organização social. Talvez essas
estruturas estejam sintetizadas no seu psiquismo, no inconsciente coletivo do grupo. Essas
regras inscritas na cabeça de todos são capazes de assegurar o equilíbrio do modelo cultural.
Não haveria necessidade, então, de tê-las concretamente ou de criá-las artificialmente, pois
não teriam função e importância para a vida do grupo.
No nosso caso civilizado, com a perda do modelo cultural integrado e seguro,
precisamos ter tudo escrito, institucionalizado, para nos sentirmos mais protegidos e
confiantes. Uma tentativa de organizar pelo lado de fora o que não se consegue organizar pelo
lado de dentro do psiquismo.
Nesse caso o comportamento reativo dos civilizados poderá estar representando um
alto grau de desconfiança e inadaptação na convivência entre os homens civilizados, uma
deterioração da sua organização social e uma reação contínua aos efeitos que ela proporciona
aos que vivem e convivem dentro dela. Aprendemos que cada cultura cria seus problemas,
suas dúvidas e suas soluções. Cada uma terá que resolver essa questão por si própria.
Os primeiros cronistas portugueses do século XV, quando da invasão do Brasil, diziam
que os índios brasileiros eram pessoas “sem fé, sem lei, sem rei. Pareciam mais animais do
que gente”. Os portugueses gostavam de sentir medo do seu Deus, do seu Rei e das suas leis?
E os degredados, porque já existiam naquela época ? Teriam sido os precursores dos
infratores atuais ?
A verdadeira Autoridade é filha do “respeito ao outro”, que é filho da Admiração; da
verdadeira admiração por quem não precisa usar o poder e a violência da coerção. O bom
caráter da Autoridade constrói o Respeito, que alimenta a admiração, que admira o bom
caráter da Autoridade. É preciso dizer que o autoritarismo (autoridade violenta e punitiva)
destrói a admiração e suprime a autoridade. Todo déspota, pela falta de autoridade que
percebe em si mesmo, realimenta a opressão e recebe como resposta, mais cedo ou mais tarde,
a reação infratora dos oprimidos.
Entre os índios a Autoridade é a Tradição. Seus líderes são os representantes
transitórios dessa autoridade tradicional, mas não serão respeitados se derem ordens.
Enquanto o nosso patrimônio cultural se desintegra gradativamente, levando para o
ralo o que sobrou dos nossos sentimentos, princípios e valores, precisamos procurar formas
verdadeiras de resgatar nossa integridade econômica, social e religiosa. Queremos viver e
conviver num mundo livre, onde possamos ser os senhores de nós mesmos e os súditos de
uma Nova Tradição (pode-se ler: Nova Ordem Social).
Certa vez um xamã (pajé), sabendo que havia um médico de brancos na aldeia,
perguntou como ele fazia para reintegrar os espíritos (curar as doenças) nos corpos das
pessoas. Na ocasião o médico de brancos não soube responder a sua pergunta e as explicações
que tentou dar, certamente o pajé não compreendeu. O médico de brancos não ficou satisfeito
com os seus próprios esclarecimentos e ficou pensando se o pajé o havia considerado um
xamã de quinta categoria que não conhece rituais, não sabe dançar e cantar e nem mesmo usar
plantas medicinais e conhecimentos mágicos para entrar em contato com o mundo dos
espíritos. Se o médico de brancos o encontrasse hoje, teria melhores explicações para lhe dar.
Diria que os brancos só conseguem encontrar remédios que atuam no corpo. Que ainda não
conhecem os remédios do espírito, porque não se reconhecem como pessoas iguais perante à
tradição que já não possuem.
Diria mais: que a convivência entre pais, filhos, parentes e amigos na sociedade branca
foi contaminada por alguma magia estranha que altera esses vínculos; que reconhece que os
maus espíritos da violência, da fome e da injustiça, ocuparam sua floresta e estão afugentando
os bons espíritos da paz, da solidariedade e da esperança. E que os xamãs brancos não sabem
lidar com isso, e que entre eles há muitos xamãs falsos e mentirosos. Que o seu povo anda
muito desconfiado e por isso constrói muitos templos e muitas leis para tentar encontrar novos
caminhos. Que é possível que um dia encontre uma forma melhor de viver e conviver com os
bons espíritos da sua floresta. Assim, com eles, poderá se livrar das doenças do corpo e da
alma e poderá erguer nas suas terras um mundo onde a convivência se construa pelo amor,
pela admiração, pelo respeito mútuo e pela justiça. Onde os seus líderes possam aprender que
a verdadeira autoridade não se sustenta numa pessoa só ou num Estado Nacional, instituição
que ocupa o Poder para manter a violência e suprimir a liberdade de todos.

Equilíbrio e Desequilíbrio na Cultura
(RELATOS E SIGNIFICADOS DE COMPORTAMENTOS ATIVOS)

Sentimento e Gesto
Desde o início procuramos mostrar que as distorções em nosso modo de viver e
conviver atingem e alteram a Organização Social, a Família e o Indivíduo. Dissemos que
esses três planos da convivência estão interligados e se influenciam mutuamente. Se
aceitarmos que o indivíduo é a unidade de qualquer grupo social, teremos que aceitar que seu
comportamento é o motor das relações sociais e que seu psiquismo é o ponto de origem onde
tudo se inicia.
Quando falamos em mimetismo psicossocial queremos dizer que as pessoas, num
mundo cheio de mentiras e falsidades, procuram se defender mentindo, fraudando, retendo e
camuflando seus sentimentos, princípios e valores. Suas emoções! Num mundo onde as
emoções não podem fluir sem medo, o psiquismo se oprime e o comportamento se altera.
Também dissemos que todas as lembranças e experiências pelas quais passamos na
vida necessitam de um processo de emotização para serem registradas e organizadas na
mente. Esse é um fator indispensável para que haja organização, integração e equilíbrio no
mundo mental. É tão importante a emoção, que matamos, cometemos suicídio, amamos,
criamos, construímos ou destruímos movidos por essa força. Um mundo sem emoção seria o
tédio total, o mundo das máquinas e robôs! Seria a morte da alma.
Quando falamos sobre doença e comportamento queremos dizer que o indivíduo é
acusado de ser doente mental ou ter qualquer comportamento anormal, sem avaliarmos que
ele sempre pertenceu a uma família e a uma sociedade e que sofreu fortes influências desses
dois meios durante toda a sua vida. Ora, se isso é verdade, temos que admitir que seu
psiquismo é formado sob a força dessas influências. Que a cultura que o influenciou e o modo
como foi tratado no seu grupo familiar pesará fortemente sobre a qualidade dos seus
sentimentos, princípios e valores, permitindo ou não que se expresse livremente ou que
reprima intensamente suas emoções.
Essas variações traumáticas podem alterar seu equilíbrio psíquico, o que será mostrado
no seu comportamento, mais cedo ou mais tarde. Freqüentemente, mais tarde. Como sair
desse dilema? Tratando (remendando) o indivíduo, ou alterando os valores da cultura e da
família? As pessoas querem mudar? Uma coisa é certa: o psiquismo continuará registrando as
experiências do mesmo modo, como já vem acontecendo há milhares de anos.
Quando falamos dos índios só queremos mostrar comparativamente como um modelo
cultural bem constituído pode facilitar um bom equilíbrio psíquico e, conseqüentemente, uma
convivência mais harmoniosa e equilibrada. Ao visitarmos outras culturas diferentes da nossa,
estamos tão embriagados com os nossos costumes e valores, que geralmente não
compreendemos os deles.
Dissemos que o comportamento ativo é todo comportamento humano positivo e
construtivo, que produz apenas harmonia e equilíbrio interno (no psiquismo) e externo (na
família e no ambiente) e que contém altos níveis de sentimentos, princípios e valores
saudáveis nas pessoa que o expressam. A lógica desse comportamento reside
simultaneamente na sensação de bem estar do indivíduo e do grupo. Quando uma dessas
instâncias sofre alterações e é atingida por mudanças não aceitas pelo bom senso e pelo
consenso, iniciam-se processos reativos nos indivíduos que os transmitem para o plano da
convivência, gerando conflitos e produzindo uma desorganização nas normas de conduta
vigentes até então. Concluindo, poderíamos dizer que “regras justas e aceitáveis de
convivência determinam o equilíbrio físico e mental”. Nas comunidades naturais a
compreensão dessas regras é tão clara que determina um comportamento quase automático,
inscrito fortemente na consciência de cada membro, produzindo os costumes (Tradição) e
determinando a estabilidade da vida social (Eixo Cultural). Vejamos como isso acontece
através de fatos reais:

Destrutividade
Um fato ocorrido em uma sociedade natural (aldeia indígena) nos mostra claramente
como esse grupo lida com a destrutividade humana. Vamos ao relato:
Quebrando Panelas
“Uma índia fazia panelas de barro à porta de sua oca. Eram enfeitadas de um lado com
cabeça e bico de pássaro e de outro lado com um rabinho. Seu filho de três anos assistia esse
trabalho e, logo que sua mãe terminava uma panela, ele imediatamente quebrava a cabeça e o
rabinho. Ao terminar outra panela ela repetia o mesmo gesto e seu filho tornava a quebrar a
cabeça e o rabinho. Isso já tinha se repetido tantas vezes que o missionário branco resolveu
perguntar: - Por quê você não faz só o corpo da panela e deixa para colocar a cabeça e o
rabinho quando ele não estiver presente? Ela respondeu calmamente: - Porque ele gosta de
quebrar panelas com as cabeças e rabinhos!
Comentário:
Todo ser humano nasce com potencial destrutivo. Toda criança é naturalmente
destrutiva: morde, bate, quebra. Só aprende a construir a partir de experiências primitivamente
destrutivas. Depois que atua destruindo, passa para uma outra fase de socialização, da
agressão: aprende a reparar e construir. É possível que a índia já soubesse intuitivamente
sobre essa evolução natural dos instintos humanos e deixasse o filho completar naturalmente
essa primeira fase. Como sua cultura valoriza pouco o objeto material, ela poderia estar
valorizando o desenvolvimento normal do filho, mesmo sem saber dessas questões da
psicologia. Nessas sociedades é comum ver-se crianças de cinco a dez anos ajudando suas
mães a enfeitar suas panelas, a tecer cestos, fazer tarefas domésticas, sem serem solicitadas.

Gratidão
Neste relato podemos observar o grau de profundidade a que pode chegar o sentimento
de gratidão e o simbolismo contido nos presentes ofertados a alguém.
O Ovo de Pato
Na Unidade Sanitária estava chegando o sexto índio contaminado pela tuberculose.
Resolvemos visitá-los num fim de semana para examinar os mais de oitenta índios da aldeia
Nazaré na cabeceira do rio Marau, afluente do rio Maués no Estado do Amazonas. Eram
semi-aculturados, em contato com missionários na aldeia a alguns anos.
Descemos da canoa e já encontramos tudo organizado para começar a trabalhar.
Auscultamos todos, e os que não sabiam falar português respondiam para um missionário ou
para o chefe que traduzia para nós. No dia seguinte o trabalho continuou e só a tarde foi
concluído.
Um missionário nos avisou que o tuxaua Paulo (nome do líder da aldeia) queria que
fossemos conhecer sua família e agradecer pelos serviços que prestamos à sua gente. Pediu
que tirássemos fotografias da sua família e no final, num gesto cerimonial, nos deu de
presente um bonito ovo de pato selvagem que havia coletado há alguns dias. A principio não
entendemos nada. O que tinha a ver um ovo de pato com os serviços que fizemos?
Procuramos o missionário e pedimos que explicasse aquilo. Ele arregalou os olhos e nos
perguntou: - Ele deu este presente? – Sim! – respondemos. Os seus olhos azuis brilharam e ele
falou: - Mas essa é a maior honraria que um branco é capaz de ganhar dessa gente. Todo
mundo vai ficar sabendo disso.
Comentário:
O missionário falou que naquela época do ano as chuvas diminuíam de intensidade e,
por conseqüência, os rios diminuíam os seus volumes d’água. Os peixes desciam para rios
mais volumosos e a caça procurava outros lugares para se abastecer de água e comida. Tudo
ficava mais difícil para caçar e pescar e os esforços para conseguir comida aumentavam. O
costume tradicional era coletar e armazenar ovos de aves e répteis (que se conservavam por
muitos dias) para preservar a reserva alimentar da tribo. Havia um código ético de que as
crianças não podiam ficar com fome nesses tempos de escassez. Bom, coletar ovos seria uma
forma de garantir comida às crianças, pelo menos. Reserva alimentar de proteínas para as
crianças, naquela tribo, era uma questão de honra. Ora, tirar da reserva alimentar dos filhos
para oferecer presentes, principalmente para brancos, poderia ser no mínimo um grande
privilégio.
Ficamos emocionados quando compreendemos isso, mas mesmo assim, não
conseguimos perceber totalmente o profundo gesto daquela tribo. Depois de algum tempo
entendemos que fôramos agraciados com um ato de profunda gratidão. Nunca alguém
propiciou tamanha felicidade por um trabalho que fazíamos mecanicamente. Na nossa
civilização ninguém valoriza esses gestos. Tivemos o cuidado de levar esse ovo prá casa e
comê-lo com grande satisfação. Se o tivéssemos esquecido na aldeia teríamos cometido uma
grande ofensa para com aquele povo tão generoso.
Há algum tempo atrás ficou provada a extrema necessidade que as crianças possuem
pela aquisição de proteínas nessa fase de crescimento. Essa necessidade está voltada para a
construção das estruturas do corpo e do cérebro.

Ritual de gratidão
Esse relato nos mostra a importância que é dada a um indivíduo no grupo, e como se
expressa o sentimento de gratidão manifestado pelo grupo como um organismo inteiro
(identidade grupal).
O Presente dos Colares
Desses tratamentos que fizemos em índios, o caso mais agudo foi o de uma índia de
quinze anos. Chegou na Unidade Sanitária um caco quase sem vida. Estava esquelética.
Pesava menos do que a maca que a conduzia. Era um caso grave e a internamos na própria
Unidade, coisa que não era permitida pelo regulamento. Clinicamente era um caso de
tuberculose, mas, dos três exames de escarro feitos, todos foram negativos. Lembramos da
aula de um grande professor que nos ensinou que existem casos de “tuberculose fechada”,
aquelas que não mostram positividade nos exames de escarro. Acreditamos no diagnóstico e,
quebrando as regras da FSESP (Fundação Serviços de Saúde Pública) iniciamos o tratamento.
Tudo indicava que o raciocínio estava certo.
Três meses depois a índia tinha cinco quilos a mais de peso e recuperou seu peso
normal aos seis meses. Respondia até mais do que o esperado em termos de recuperação.
Estávamos felizes e a visitávamos duas vezes por semana na casa do pastor Ronald, onde ela
estava hospedada. Ela foi liberada para continuar o tratamento por mais seis meses na sua
tribo sob coordenação do mesmo pastor que a hospedara. Ficamos tranqüilos e continuamos o
trabalho na Unidade como de rotina. Meses depois ela voltava para novos exames e, já tendo
completado o tratamento, recebeu alta por cura completa.
Certa tarde a auxiliar de enfermagem nos informou, já no final do expediente, que
havia uma comitiva que queria conversar conosco. Estávamos cansados, mas pedimos que
entrassem. Eram quinze pessoas: a índia, seu pai, um irmão, um tio, uma tia, o chefe da tribo,
o pajé, outros parentes e o pastor Ronald e seus familiares. Ficamos surpresos. O pastor
Ronald falou algumas palavras na língua deles e as traduziu, em seguida falou o pai, depois o
pajé e por último o tuxaua. De olhos arregalados ouvíamos tudo e em seguida cantaram e
falaram palavras que só foram traduzidas depois. O pai, o chefe e o pajé colocaram, cada um
por sua vez, no nosso pescoço, três colares feitos pela índia que havia sido tratada.
Cumprimentos de todos e o ritual se encerrou.
Comentário:
Fomos homenageados pela índia, seus parentes e pela tribo com colares que
significavam mais ou menos: “cidadão do povo”, algo parecido com “persona grata” ou
“guerreiro de confiança”, tradução do pastor. Para nós, até hoje, nenhuma quantia em dinheiro
tem mais valor do que essa honraria. Compreendemos que nesses grupos humanos o valor de
uma pessoa é tão grande que pode mobilizar todo o grupo, seja para a guerra, seja para um
gesto de gratidão.

Coletivismo e assertividade
Neste relato podemos observar dois costumes comuns entre grupos indígenas: o senso
coletivo e o sentimento de sinceridade expressiva (sintonia, assertividade).

A Farra de Café
Costumávamos caçar e pescar naquela época. Um dos companheiros de caçada era um
civilizado da cidade de Boa Vista-RR. Trabalhava numa borracharia e era um “mateiro”
(conhecedor da mata) muito experiente. Conhecia muito bem o lugar para onde estávamos
indo. Tinha o hábito de levar café e açúcar para um grupo indígena que conhecia há alguns
anos e que ficava a meio caminho do local da caçada. Falava um pouco a língua deles e os
respeitava muito.
Contou-me que ao receber o presente, seu amigo índio o entregara para sua mulher
que imediatamente convidou todos os outros índios para uma verdadeira festa. Como se
tratava de um quilo de café e dois de açúcar, eles ficavam bebendo até que todo o café e
açúcar acabasse. Poderiam entrar pela madrugada adentro bebendo café e conversando. Nunca
guardavam e sempre repartiam. O presente dado a um, era o presente para o grupo todo. Uma
questão de costume.
Certa vez convidou um rapaz da cidade para uma caçada e entraram na aldeia para
entregar o café e cumprimentar o amigo índio. O rapaz afastou-se um pouco e começou a
fazer gracinhas com índias que o rodearam para vê-lo de perto, pois era um desconhecido para
o grupo. Despediram-se e continuaram a caminhada. Na volta o rapaz pediu para que
entrassem de novo na aldeia, pois ele queria receber arcos e flechas de presente. O mateiro
falou para o índio que o rapaz queria arcos e flechas. O índio se retirou e logo voltou com dois
arcos e seis flechas muito bonitos e enfeitados com penas de pássaros. Falou para o mateiro: -
Isso é seu ! Para ele não daremos presentes e nem queremos receber. Ele não é amigo do
nosso povo. Ele é gente ruim...!
Comentário:
Os índios percebem com facilidade as intenções dos brancos que visitam as aldeias.
Guardam na memória os gestos e as palavras que conseguem entender. Cultivam a amizade,
mas não gostam de ser humilhados. Quando repelem uma amizade dificilmente mudam de
idéia depois. São simples e sinceros e falam o que sentem na frente das pessoas. Não possuem
o hábito de mentir ou falsear seus pensamentos e sentimentos.

Força do modelo cultural
Neste curto relato podemos observar a importância da qualidade de convivência em
uma cultura integrada.

A Volta
Há algum tempo atrás lemos a reportagem sobre um antropólogo americano que
casou-se com uma índia ianomâmi. A índia aceitou sair da aldeia e morar com ele nos EUA.
Após alguns anos de convivência com a civilização resolveu voltar para sua tribo. Deixou
dois filhos com o pai e retornou aos seus velhos costumes. Não se adaptou.
Comentário:
Não é fácil trocar um grupo humano integrado e solidário por uma “civilização” cheia
de problemas, onde as pessoas são tratadas de forma desumana.

Organização e hierarquia na distribuição do alimento
Neste relato podemos observar como os hábitos e costumes gerados pela tradição
funcionam na convivência em uma cultura integrada.
A Distribuição da Comida
Já estava começando a anoitecer. Estávamos sentados sobre um tronco em frente a
palhoça onde o missionário morava. Bem em frente, há uns trinta metros, havia um barracão
coberto de palha e sem paredes. Nele uma índia mantinha a fogueira acesa e de vez em
quando a alimentava com pedaços de galhos secos. O missionário dizia que ela estava
esperando seus parentes, homens, que tinham saído para caçar. Pediu para prestarmos atenção
sobre o modo de distribuição da comida naquela tribo. Segundo ele, havia um ritual bem
disciplinado sobre a hierarquia no ato de servir-se do alimento.
Já estava quase escuro quando um grupo de quatro índios entrou na área da aldeia com
duas grandes pacas penduradas nas mãos. Foram seguidos por crianças e jovens curiosos que
falavam e riam o tempo todo. Deixaram as pacas sobre uma esteira no barracão e se retiraram.
Mais duas mulheres se aproximaram e começaram a preparar as pacas para assar. Quando
tudo estava pronto as crianças se aproximaram e começaram a tirar pedaços do assado para
comer com beijú (espécie de pão feito de mandioca). Depois vieram os velhos seguidos das
mulheres. Por último chegaram os homens e comeram o que restava da caça. Não sobrou
nada.
Comentário:
O missionário explicou que, naquele grupo, as crianças tinham prioridade para servir-se, em
segundo lugar vinham os velhos, depois as mulheres e por último os homens. Comer
coletivamente obedecia a costumes muito antigos ensinados pelos mitos e pela tradição.
Todos conheciam esses critérios e não avançavam desordenadamente para comer.

Poligamia e monogamia
Neste relato podemos observar como hábitos e costumes tradicionais geram valores
que regulam a força dos instintos no grupo.

Uma ou mais Mulheres?
Em certos grupos indígenas qualquer homem pode ter mais de uma mulher, desde que
haja mulheres suficientes no grupo. Porém nem todos usam desse direito tradicional, muitos
recusam a possibilidade e preferem ter apenas uma companheira. Muitos civilizados devem
achar esse comportamento bastante estranho. Mas é assim que acontece em algumas tribos.
Foi perguntado a um índio adulto se ele não queria ter duas ou três mulheres. Sua
resposta foi simples: - Tem gente que gosta de ter mais de uma. Eu só gosto de ter uma.
Comentário:
Nesses grupos a maior humilhação que um guerreiro (homem adulto) pode sofrer se
baseia na sua incapacidade de conseguir alimento suficiente para sua família. Deixar filhos e
mulher com fome é muitas vezes pior do que ser chamado de homossexual, ladrão ou
covarde. Como em determinadas épocas do ano a caça e a pesca se tornam bem escassas, fica
muito difícil alimentar muitas bocas. Cair no ridículo perante todos do grupo seria o resultado
final dessa incompetência demonstrada pelo guerreiro.
Vamos raciocinar: Um guerreiro com sua mulher e dois filhos teria que alimentar
quatro bocas; se tivesse mais uma mulher e dois filhos, teria que alimentar sete bocas; se esse
número aumentasse o guerreiro não teria tempo para fazer mais nada e sua vida estaria restrita
a caçar e pescar grande parte de seu tempo. Não poderia mais conversar e divertir-se. Prover
com alimento suficiente sua família é uma questão de honra que um guerreiro deseja manter
sempre.

Acordo “de verdade”
Neste relato podemos compreender como a verdade e o acordo são valores de grande
importância em sociedades que não utilizam a fraude e a mentira como mediadores das
relações no grupo.
A lanterna quebrada
Numa aldeia, ás margens do rio Catrimân, nas florestas da serra Parima em Roraima
residia um grupo de índios Ianomâmi. Era um grupo recentemente contatado, andavam nus e
mantinham grande parte de sua cultura tradicional. Eram aproximadamente noventa índios. Lá
tinha sido instalada uma missão católica (Missão Catrimani) há pouco tempo. Os padres João
e Carlos moravam numa casa de madeira a cem metros da maloca. Entramos com uma equipe
de pesquisas para coletar sangue e material da garganta dos índios com o objetivo de
descobrir que tipo de vírus estava matando os índios de pneumonia em outros locais da
região.
Descemos do pequeno avião num campo de pouso todo de terra, a poucos metros da
casa dos padres. Logo ao descermos vieram algumas crianças para ver o avião e olhar
curiosamente para nós.
Um índio de aproximadamente trinta anos aproximou-se do padre João, que viajara
conosco, e falava insistentemente no seu dialeto mostrando uma lanterna velha sem pilha e

sem a tampa de trás. Não entendíamos nada, mas notamos um ar de preocupação no rosto do
padre.
Mais tarde nos contou: o índio havia trocado aquela lanterna velha com um homem
branco (peão de construtora de estradas) que estava caçando por aquelas bandas. Ele havia
dado em troca um porco-do-mato inteiro e mais alguns arcos e flechas. Disse ele que o branco
afirmara que aquele objeto fabricava luz e ele podia enxergar a noite. Depois o branco
mandaria as pilhas e a tampa de trás. Nunca cumpriu sua palavra e já tinha passado dois
meses. O índio estava querendo entender porque o homem branco não cumprira o que
prometeu e estava demorando tanto.
Comentário:
O padre João explicou para nós que naquele grupo eles não conheciam a mentira. No
ramo lingüistico deles não havia qualquer palavra referente a enganar, mentir, descumprir.
Não conheciam esse hábito civilizado e o padre estava em dúvida se deveria colocá-lo a par
da realidade branca, onde uma pessoa pode enganar a outra. Ele aprenderia esse costume novo
e o contaria para os outros índios, contaminando assim aquela cultura pura e sem maldades.
Mas um dia teria que falar sobre isso, pois a civilização estava se aproximando da aldeia com
a abertura da estrada.

Controle populacional
Neste relato podemos compreender como certas comunidades indígenas controlam
suas populações, tendo como base condições e fatores naturais atuando na lógica de
crescimento do grupo.
Poucos filhos
Um dia perguntamos ao padre João porque uma família indígena tinha sempre uma
média baixa de filhos. Eram sempre dois ou três os filhos de um casal. Ele citou as razões
ligadas ao número de bocas a alimentar e falou sobre um possível uso de anticoncepcionais
naturais pelas mulheres. Mas não tinha certeza dessa utilização de anticoncepcionais. Falou
apenas que as mulheres se reuniam periodicamente dentro da mata e parece que faziam chás
com uma espécie de batatinha semelhante ao gengibre. Não sabia dizer para que servia, e se
aquilo tinha alguma coisa a ver com o controle da natalidade. Nessas reuniões a presença dos
homens não era permitida pela tradição.
Comentário:
Atualmente o controle populacional é função dos governos. A forma de distribuição
dos bens produzidos determina quem pode e quem não pode comer. Mas a reprodução é um
bem individual determinada pelo indivíduo. É possível que as famílias numerosas e a
superpopulação sejam reflexos da desorganização social entre brancos, uma espécie de
“compensação desviada” para garantir a sobrevivência.

Uso da etiqueta
Neste relato podemos perceber como, em grupos que adotam o princípio da verdade,
não são aceitas as convenções falsas utilizadas de forma generalizada e automática pelas
sociedades civilizadas.
Os Cumprimentos
Nessa mesma aldeia onde morava o padre João, após descermos do avião, nos
dirigimos para a casa dele. No alpendre já havia um pequeno grupo de índios e índias
reunidos. Ao entrar cumprimentamos a todos e nenhum gesto de retribuição foi feito.
Ninguém respondeu ao cumprimento. Os outros dois médicos também fizeram o mesmo e
nada aconteceu. Silêncio total.
O padre João, percebendo o nosso desapontamento, explicou: Eles aqui não conhecem
o nosso costume de cumprimentar. Alguns dias atrás falei a eles que iria trazer três amigos
que eram “pajés de brancos” (médicos); e que iriam furar o braço de todos para tirar sangue,
dar uma água para lavar a garganta e depois cuspir num pote (frasco de coleta). Isso iria servir
para que descobrissem a doença que estava matando outros índios. Eles aceitaram porque
acreditam em mim.
Entre eles, a palavra “amigo” tem valor real. Amigo é amigo, inimigo é inimigo.
Como não se mente, tudo o que é dito é compreendido como verdade inquestionável. Falou
que podíamos olhar a vontade para o corpo nu deles, pois, para eles, eles não se sentiam nus.
Eles também não se sentiam constrangidos em olhar para nós, chegar bem perto e até nos
tocar. Eles não reprimem a sua curiosidade e são muito autênticos.
Comentário:
Supomos que o cumprimento entre os civilizados, na grande maioria das vezes, é feito
de forma mecânica e obrigatória. Nós cumprimentamos sem sentirmos essa vontade, e para
ver como anda o humor da outra pessoa ou para nos sentirmos educados. Na verdade achamos
chato ter que cumprimentar sempre. Estamos sempre desconfiados em saber se somos aceitos
pelos outros ou não. Quase sempre cumprimentar é um gesto hipócrita.

Moral e nudez
Neste relato podemos perceber como, em grupos que adotam princípios morais
organizados, a nudez e a moral possuem regras diferentes das existentes nas sociedades
civilizadas.

O Cipó
O padre Carlos estava há pouco tempo na aldeia. Havia chegado da Itália e fora
encaminhado para trabalhar na missão Catrimani, para ajudar o padre João. Quando um ia à
cidade resolver questões de rotina, o outro ficava com os índios. Ainda estava aprendendo os
costumes do grupo.
Um grupo de índios composto de homens, mulheres e crianças tinha o hábito de descer
de tarde para o igarapé (pequeno afluente do rio), para tomar banho. Era uma festa, nadavam,
conversavam e se divertiam muito nessas horas. Nessa tarde, ao passarem em frente à casa
dos padres, convidaram o padre Carlos para descer com eles. O padre foi vestir seu calção e
os acompanhou pelo caminho que levava ao igarapé. No caminho, passando por um índio
jovem, o convidou para seguir o grupo. O índio fez um gesto negativo com a cabeça e parecia
encabulado. Vestia um calção vermelho e desbotado, produto de troca com um branco da
estrada. O padre se aproximou e perguntou por que ele não queria ir. Ele falou: - Estou sem
cipó !
Comentário:
Para esses índios a roupa do branco era tratada como simples ornamento, como se
fosse um colar ou pulseira. Estar vestido, para um homem da tribo, significava ter seu
prepúcio (pele que envolve a cabeça do pênis) amarrado por um cipó fino, levantado para
cima e amarrado em volta da cintura. Isso sim era estar vestido. O calção, embora encobrindo
seus genitais, não lhe dava a sensação de estar vestido. Seria uma falta de vergonha ir tomar
banho junto com o grupo daquele jeito. Ele preferia ficar assistindo os outros se divertirem
mas não quebraria a tradição. Estava se sentindo nu sem o cipó.

Humor
Este relato mostra como o ambiente (floresta) fornece substrato para um humor
analógico entre homem e animal expondo o homem ao ridículo quando este se comporta de
forma semelhante aos animais. Mostra também como a tensão entre os brancos pode produzir
tiques e gesticulações exageradas que podem expressar certa conduta ansiosa.
Risos na Canoa
Eram dez horas da manhã e os dois padres tinham de atravessar o rio para pegar
mantimentos que estavam do outro lado. Naquele trecho a correnteza era forte, o rio tinha
quase cem metros de largura e logo abaixo, a uns duzentos metros, havia uma cachoeira alta e
perigosa para quem não a conhecia. Pediram a dois índios fortes que o ajudassem a atravessar.
Cada qual com um remo, ocuparam a proa e a popa da canoa. Durante a travessia os
padres começaram a conversar em italiano e o padre Carlos entusiasmado, gesticulava muito.
Os índios achavam engraçada aquela conversa e começavam a rir, parando de remar.
A canoa se aproximava perigosamente da cachoeira logo abaixo. Voltavam a remar e
logo paravam para rir novamente. O padre João estava ficando preocupado e pediu para o
outro padre parar de falar e gesticular. Fizeram o transporte dos mantimentos sem problemas e
os índios só pararam de rir quando eles ficaram em silêncio. Durante a volta todos ficaram
calados.
Comentário:
A condição psicomotora do branco (excesso de palavras e de gestos) é diferente da dos
índios. Enquanto nós falamos e gesticulamos muito (expressão de ansiedade) eles só usam as
palavras e gestos suficientes para se comunicar (expressão de pouca ansiedade). Eles
comparam os brancos com os macacos ou micos que, segundo eles, tem gestos parecidos com
os dos brancos. O padre Carlos sabia disso e pediu para o outro padre se calar e encerrar a
gesticulação. Deu tudo certo.
Propriedade individual e coletiva
Uma das coisas que mais impressiona entre os índios é a obediência quase sagrada aos
seus costumes tradicionais. Os conceitos de: individual, coletivo, liberdade e verdade são
usados de forma tão coerente e flexível que chega a ser de difícil compreensão para nós.

O Arco
Um guerreiro saiu de sua casa e atravessou o terreno central da aldeia. Bem no meio
do caminho abaixou-se, deixou seu arco e flechas no chão e se embrenhou na mata. Poucos
minutos depois sua mulher fez o mesmo percurso e notou no chão o arco e flechas do marido.
Identificou e seguiu, sem parar, para o seu destino. Mais alguns minutos e o guerreiro voltou,
retomou suas armas do chão e penetrou na floresta.
Comentário:
A maioria das pessoas não teria notado qualquer importância nisso que acabamos de
narrar. Mas perguntamos: o que é que a maioria das mulheres branca faz quando encontram
um objeto do marido no chão?
Para certos grupos os objetos pessoais são de propriedade de uma pessoa apenas. Só
deixam de ser quando é autorizado, pelo proprietário, outro tipo de uso. Nenhuma outra
pessoa deve exercer qualquer tipo de poder sobre ele sem autorização, como por exemplo:
trocá-lo de lugar, pegar sem pedir, etc. Cada pessoa é o único detentor do poder sobre seu
objeto pessoal e quando essa pessoa morre, seus objetos são enterrados com o corpo, pois
nenhum objeto pode sobreviver ao seu dono. Os objetos usados em cerimoniais sagrados só
podem ser tocados por certas pessoas do grupo durante os rituais; encerrada a cerimônia ele
passa a ser um objeto qualquer que pode ser usado livremente e até servir de brinquedo para
as crianças. Em vários grupos o objeto é visto pelo seu valor utilitário (função) e não possui
valor comercial. O que uma pessoa faz ou deixa de fazer com seus objetos é de sua inteira
responsabilidade, e ninguém se sente com direito de emitir qualquer tipo de comentário.
Comentar seria invadir a privacidade e se intrometer na individualidade do proprietário, coisa
ridícula para eles.

Crime e tradição
Uma das questões mais difíceis de compreender entre os brancos é a diferença entre
crime e costume. Enquanto em certas sociedades naturais o infanticídio é consenso, nas
sociedades civilizadas passa a ser crime.

Infanticídio entre os ianomâmi
O missionário, falando sobre os costumes daquele grupo, contou que nos casos de
nascimento de gêmeos, o costume tradicional era sacrificar um deles, geralmente o menor e
mais fraco (seleção natural). Contou que uma índia grávida estava com a barriga muito
volumosa e entre as mulheres corria um comentário que ele não conseguia compreender. Os
comentários estavam ligados a um mito relacionado a esse tipo de ocorrência, aliás, bastante
raro, nesse grupo. A tradição dizia que a gravidez gemelar era uma interferência de espíritos
destrutivos da floresta que tencionavam introduzir no grupo, um espirito que teria como
objetivo promover distúrbios dentro da tribo. Como em outros grupos, eles acreditam que as
entidades espirituais são seres da floresta que geralmente estão sob forma de animais
(zoomorfismo) e que em certas circunstâncias (nos partos, por exemplo) assumem forma
humana para desorganizar a vida na tribo, produzindo atritos entre as pessoas. O indivíduo
menor e malformado é identificado como um desses seres. Confesso que a minha primeira
reação foi de repúdio ao fato. Muito depois consegui compreender que a força da tradição
torna-se mais forte para proteger o grupo em detrimento do indivíduo, o que, aliás, é um
princípio geral das comunidades naturais.
Comentário:
Um paradoxo visível nas sociedades civilizadas é a forma incompreensível de se
indignar com um caso desses, enquanto ficamos passivos diante de espancamento (e
abandono) de crianças e das mortes de jovens e adultos, por motivos fúteis, que já não nos
sensibilizam tanto hoje em dia. O que é crime, então?

Guerra e diplomacia
Conceitos de guerra e diplomacia entre sociedades naturais e reativas são tão
diferentes que chegam a confundir o raciocínio. Enquanto em certas sociedades naturais
guerra e diplomacia são sub-etapas de um conjunto de objetivos aceitos em consenso, nas
sociedades civilizadas são objetivos separados e decididos pela cúpula (governantes).
O ataque
Numa certa manhã, bem cedo, a aldeia foi atingida por uma saraivada de flechas
disparadas por um grupo ianomâmi vizinho. O missionário disse que não conseguia
compreender como os agressores, após o ataque, haviam fugido tão rapidamente levando
consigo duas mulheres, sem ferir qualquer dos membros do grupo. Comentários sobre o
ataque foram o assunto durante todo o dia. A tradição dizia que a dignidade do grupo havia
sido atingida e que um contra-ataque deveria vir em seguida, um consenso que teria como
objetivo devolver a autoconfiança dentro da tribo. O missionário, falando sobre os costumes
daquele grupo, contou que nos casos de conflito, o costume tradicional era responder primeiro
ao agravo, para depois fazer as pazes. Como em outras aldeias, eles acreditam que os grupos
possuem personalidade forte e que não podem ser desrespeitadas sob quaisquer
circunstâncias. Foi formado um conselho que identificou o inimigo pelas características das
flechas e marcou um contra-ataque para o dia seguinte. Após efetuarem as pinturas de guerra
e o preparo das armas, lançaram-se á ofensiva. Meses depois haviam marcado uma festa de
confraternização que resultou em troca de mulheres e objetos fabricados por cada grupo.
Conseguimos compreender que a força da tradição torna-se mais forte para proteger o grupo,
mas, ao mesmo tempo, valoriza a diplomacia como base de convivência intergrupal, o que,
aliás, facilita o comércio e evita a consangüineidade nas comunidades naturais.
Comentário:
O que mobiliza as guerras nas sociedades civilizadas são motivações tão mesquinhas e
dissociadas de interesses coletivos que as vítimas muitas vezes morrem sem saber porque (e
por quem) estão lutando.

Liberdade e individualidade
Pai, mãe, chefe ou pajé não ousam se intrometer na individualidade das crianças,
jovens ou adultos, pois desde pequenos aprendem que são responsáveis, cada um por si, sobre
seus atos, palavras e objetos. Sabem reconhecer com precisão os territórios do individual e do
coletivo para não serem motivo de risos dos outros. Cultivam a liberdade para se sentirem
livres, pois um cidadão ou cidadã adulta sabe escolher e sabe o que fazer; cultivam a verdade
para se sentirem autênticos consigo próprios e sintonizados com o grupo. Preservar o
individual, o coletivo, a liberdade e a verdade são hábitos tão automáticos que a discussão,
entre eles, sobre esses assuntos não teria qualquer sentido lógico.
Entre os grupos humanos naturais, o fator decisivo para a manutenção do equilíbrio
cultural pode ter sido: a escolha da figura humana como objeto principal no imaginário do
grupo. Os fatores de coesão podem ter sido: os sentimentos de solidariedade e generosidade;
os princípios individuais, como verdade e igualdade, os valores como justiça e respeito,
podem ter assegurado a evolução da identidade desses povos. A decisão política em não
permitir o uso do poder pelo homem, deslocando-o para uma esfera abstrata (tradição), pode
os ter livrado da decadência e do desaparecimento. Sabe-se que os ancestrais dos indígenas de
hoje chegaram ao território americano a mais de doze mil anos atrás.

* Os relatos acima citados foram baseados em fatos reais, coletados em diferentes
grupos indígenas da Amazônia, em tempos e circunstâncias diferentes, através de observação
pessoal do autor ou transmitidas por pessoas idôneas que conviveram nesses grupos por longo
tempo.

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