Comportamento Reativo e Drogas
Entre os animais não existe prostituição, drogadição (toxicomania), crimes hediondos
e outros fenômenos que existem entre os homens. Eles agem por instintos, que são estímulos
desenvolvidos para a sobrevivência e reprodução. A consciência de si próprio no mundo, o
juízo critico ou discernimento e outros atributos superiores só existem nos seres humanos.
O mecanismo que induz as sociedades humanas a supervalorizar o sexo através da
associação com pecado, é percebido na relação entre proibição e droga. Compreendendo que a
associação sexo-pecado-dinheiro valoriza o produto (sexo), é fácil identificar a mesma
associação entre droga-proibição-dinheiro. Como o civilizado é potencialmente infrator (sem
modelo cultural), tudo o que é proibido passa a ter valor e, transgredir, passa a ser excitante.
Droga sem proibição é droga barata, desinteressante e não dá lucro. É necessário, portanto,
manter a proibição e a desinformação para valorizar o produto.
O valor social das drogas:
As drogas estão integradas à natureza desde o início do aparecimento da vida na Terra.
Por experiência instintiva e usando os sentidos, os animais reconhecem e selecionam os
vegetais, minerais ou animais que servem para sua alimentação ou que podem aliviar
incômodos ou doenças, dos que possam causar-lhes danos ou experiências desagradáveis.
Esse capacidade é essencial para a sua sobrevivência e para o aprendizado das relações com o
ambiente.
O uso das drogas pelo homem segue os mesmos rumos da experiência/sobrevivência e
se destaca pelo refinamento desse reconhecer, classificar e elaborar a droga através de
diferentes processos. Mas o que diferencia a relação homem/droga da relação animal/droga é
a capacidade humana de incorporá-la à sua cultura, de forma ritualizada e fortemente presa
aos seus costumes e valores.
As condições de sobrevivência dentro de uma cultura complexa permitiram ao homem
exercitar outras capacidades como a de falar, escrever, dançar, cantar e, inclusive, a de
intoxicar-se dentro das expectativas de cada grupo cultural e de cada indivíduo.
O cultivo, a manufatura, o tráfico e o uso de drogas apresenta consideráveis diferenças
segundo o grupo humano que as utilizam. A importância dada à substância tóxica é conferida
pelo grupo humano que a cultiva, transforma, comercia e usa. O interesse que desperta nos
diferentes grupos humanos reflete as expectativas e os interesses próprios de cada um desses
grupos. A forma de lidar com as drogas dentro de cada grupo étnico mostra claramente, entre
outras coisas, o seu nível de integração ou desintegração cultural.
Trabalho, lazer, sexualidade, religiosidade, drogas, além de outros componentes vitais,
fazem parte da dinâmica do corpo social e estão inter-relacionadas de forma a compor um
quadro social em movimento.
As formas de usar drogas e as condições que organizam esse uso podem ser diferentes
de acordo com os valores do grupo humano, mas todas elas são expressivas e significativas
para os indivíduos dentro de cada grupo.
A Droga nas Sociedades Primitivas:
Nas sociedades tribais as drogas estão incorporadas de forma equilibrada através de
ritos, crenças e tradições que compõem o seu mundo mágico, religioso, político e econômico,
que por sua vez está vinculado a elementos ético-morais, de lazer e da realidade ambiental.
Nessas sociedades as drogas estão associadas a diferentes situações: ao nascimento ou
morte de seus membros, nas grandes festas de iniciação, nos momentos de doenças, de cultivo
ou colheita de alimentos, etc. A incorporação das drogas a essas situações apresentam sempre
um significado próprio e estão condicionadas a regras e costumes que remetem à tradição do
grupo. Nem todos os membros as usam e o seu uso freqüentemente fica restrito a situações
determinadas. Nessas condições a droga passa a ter uma função social e a se revestir de um
caráter tradicional religioso ou curativo, respeitado e seguido por todos. Nessas sociedades,
portanto, a droga cumpre uma função social importante e é controlada por mecanismos sociais
aceitos consensualmente pelo grupo, servindo como elemento concreto de ligação entre o
mundo mágico e a realidade do dia-a-dia.
Conceitos e Preconceitos sobre as drogas na Sociedade Branca:
Já dissemos que os conceitos sobre drogas variam segundo os costumes e os valores
que as sustentam. Na sociedade branca destacamos três expectativas essenciais dos valores
sociais:
• A expectativa pelo poder econômico (ser rico, ter lucro, capacidade de
consumir).
• A expectativa pelo poder pessoal (fama, gloria, competência, ser conhecido por
todos, ser diferente dos outros).
• A expectativa pelo poder político (ser o líder, ter influência, dirigir e controlar
os outros).
Somando-se essas três expectativas, concluiremos que na sociedade branca os
indivíduos aspiram e exercitam suas a funções num plano de fantasia egocêntrica (“quero a
segurança e poder para mim” ou “quero ser alguém na vida”). Com esse perfil psicológico, o
indivíduo na sociedade branca, desempenha um papel neurótico de “controle”, que determina
o conteúdo das relações com os outros indivíduos, com os outros animais, com o meio
ambiente, com a terra, com o dinheiro, com as drogas, com o sexo, etc.
A sociedade branca lida com a droga de forma ambígua e paradoxal. Ao mesmo tempo
em que os moralistas a condenam e a segregam da realidade social, ela é usada
indiscriminadamente de forma abusiva e descontrolada por todas as classes sociais, por
indivíduos de todas as idades, com freqüência alarmante e totalmente desvinculada de
mecanismos controladores da sua função social.
Para os que a cultivam, manufaturam e comercializam sua importância se concretiza
no grande lucro que proporciona. Para os que a utilizam, sua função é permitir o alívio das
tensões, quebrar a rigidez das normas e atenuar as sensações de medo e insegurança,
permitindo alguns momentos de “certeza” e de auto-engrandecimento. Funciona como uma
“escapada” provisória da desorganização social.
Para os moralistas a droga se constitui no grande “bode expiatório” da humanidade.
Quase todos os males da sociedade estariam desaguando no elemento demoníaco depositado
na droga. Como elemento concentrador de culpa, a droga serve ao moralista com dupla
função:
• É base permanente do seu discurso e do seu “status”.
• Evita o confronto com outras questões da realidade social, como a fome, as
desigualdades sociais, as desigualdades econômicas, o desemprego, as guerras
e, sobretudo, o confronto com a questão da perda cultural.
O conceito de desenvolvimento e progresso na nossa civilização corre paralelo com a
nossa tendência materialista de lidar com as pessoas e com os objetos que nos cercam. Nossas
necessidades de aquisição de bens e de exercitar nosso poder (controle) sobre os demais e
sobre o ambiente, costuma ser do tamanho da nossa insegurança pessoal e do medo de nos
perdermos na solidão do associal. O homem civilizado vive só porque, mergulhado no seu
egoísmo e na desconfiança excessiva pelos outros, acaba enfraquecendo os vínculos pessoais
e desestabilizando as relações socioculturais. Seguindo essa premissa podemos pensar que o
apego possessivo às drogas possa representar uma tentativa dramática, e em nível
inconsciente, de incorporar as perdas sentidas no plano familiar e social, através da introdução
de tóxico no organismo de forma obsessiva.
Conceito Atual da Adição de Drogas:
Há bem pouco tempo se acreditava que o comportamento tóxico estivesse resumido a
uma corrente de apenas dois elos: a droga e o drogado. Na verdade, essa suposição muito
simples e cômoda serve a vários interesses:
• Tornar eficiente a solução do problema através de uma tendência imediatista
do homem moderno.
• Garantir à sociedade do trabalho e do lucro uma demanda de pessoas que,
classificadas como “doentes” ou “frágeis”, possam se constituir em clientela
segura para as instituições ou pessoas que se instrumentalizam com o “saber
científico”.
• Manter a sociedade e sua “ordem” em equilíbrio sem contestação dos seus
fundamentos econômicos, ético-morais ou religiosos, discriminando,
segregando ou diagnosticando os membros contestadores dessa ordem e dos
seus valores.
Com o súbito desenvolvimento dos meios de produção e do conhecimento científico
surgiram conceitos novos (eficiência, produtividade, lucratividade) que produziram profundas
alterações nos modos de pensar e de agir das sociedades industriais. A atenção se voltou para
os bens produzidos, para a descoberta científica e, sobretudo, para as inúmeras vantagens
pessoais e materiais advindas da execução dessas atividades. O centro de atenção da
sociedade industrial se deslocou do bem estar humano, para os objetos produzidos e a
produzir.
A Ciência concentrou o saber dos fenômenos naturais e a sua aplicação, nas mãos de
grupos restritos. A religião já vinha transformando a crença e os costumes em códigos morais
rígidos e culpáveis e elegeu um único Deus para substituir as múltiplas divindades existentes,
ligadas às diferentes necessidades da crença humana. A concentração ou centralização tem
sido sempre a grande tendência da sociedade que se auto-intitula de “civilizada”.
Como as necessidades e as aspirações humanas são sempre múltiplas e diferentes entre
si, chegando mesmo ao plano individual, o homem se ressente e expressa sua insatisfação de
diferentes maneiras. Uma delas é a conduta tóxica, comportamento reativo através do qual é
possível, mesmo transitoriamente, se expressar e “cair fora” do caos social. A introdução
excessiva de substâncias tóxicas no organismo é apenas uma das formas de fugir dos vínculos
sociais. Citaremos outras a título de exemplo:
• A fuga para o trabalho excessivo.
• A ingestão freqüente e prolongada de medicamentos (tranqüilizantes, sedativos
e outros).
• A busca obsessiva pela atividade sexual.
• O fanatismo religioso e o passeio por diferentes tipos de crença religiosa.
• A voracidade pelo dinheiro.
Enfim, as necessidades de incorporar ao pessoal o que o social não supre. É a
manifestação mais clara de que a ordem social branca não está voltada para o seu objetivo
principal - o homem. Na verdade, nossa sociedade “civilizada” é mais tóxica do que possamos
imaginar. O prazer de viver com os outros tem sido substituído pelo prazer de fazer, de
ganhar, de colecionar, de falar, de contar, de pensar e de mandar.
Estamos continuamente desenvolvendo nossa necessidade tóxica de adquirir objetos,
usufruir comodidades, perseguir ideais, consumir alimentos, remédios e drogas. A conduta
tóxica está muito mais representada pelo consumo abusivo e desritualizado do que pela
qualidade ou natureza química da substância ou da atividade individual. As críticas ao
comportamento tóxico ligado às pessoas e objetos padecem das mesmas características de
conteúdo. A droga é censurada e o drogadito marginalizado, sobretudo porque ele corre o
risco de se tornar improdutivo e reagir contra as regras sociais. Os outros drogaditos, isto é, os
que consomem abusivamente remédios, roupas e outros objetos ou bens produzidos, são
estimulados a desenvolverem o hábito de intoxicar-se e ganham com isso “status” e aprovação
social. A nossa sociedade só consegue ver na substância tóxica o princípio e o fim da
desagregação individual e social.
O mito da substância tóxica continua sendo tão necessário ao corpo da sociedade
como é a droga para o corpo do drogadependente. É preciso manter a qualquer custo a ilusão
de que tudo vai bem e que nosso destino é conquistar o Universo. Só não sabemos qual o
universo que desejamos conquistar.
O que nos interessa nessa nossa compreensão da convivência, não é propriamente a
substância tóxica, mas o uso excessivo e desordenado dela pelo homem, isto é, o abuso do seu
consumo, as conseqüências destrutivas desse abuso e os fatores que o determinam. Partimos
do princípio de que cada indivíduo necessita ter uma identidade pessoal e que essa identidade
serve de referência para os próprios indivíduos e para os que o rodeiam.
O indivíduo vê o mundo dentro da ótica de “si em relação ao ambiente”; nesse
ambiente estão os outros indivíduos, as plantas, a terra, os rios, ou seja, o mundo exterior a
ele. Cada indivíduo necessita ter uma identidade familiar (“os outros próximos de mim”) cuja
existência e proximidade servem de suporte a sua própria identidade pessoal. Cada indivíduo,
dentro de seu grupo parental, se sente como membro de outros grupos parentais diferentes do
seu e que por afinidade de crenças, costumes e tradições, constituem o seu grupo cultural e
determinam o seu conceito de nação, compondo assim, uma dimensão mais oceânica de sua
identidade individual.
Com isto queremos dizer que a questão da identidade (quem sou?, quem são os
outros?, quem gosta de mim?, de quem eu gosto?, qual o meu papel nisso tudo?) é,
provavelmente, o grande fator de equilíbrio que determina os comportamentos, seja no plano
individual ou no grupal, remetendo portanto à estrutura psicossocial de cada indivíduo e, por
conseqüência, à totalidade das relações sociais. O indivíduo não é uma ilha na sociedade. Pelo
contrário, ele está ligado a uma cadeia social, com superposição de identidades, de interesses
e de laços afetivos e culturais.
O indivíduo que abusa das drogas expressa, através do uso excessivo delas, a
necessidade de suprir-se desses vínculos essenciais da cadeia social, necessários que são ao
desenvolvimento da sua personalidade e ao seu equilíbrio no grupo social. O abuso de drogas
não é, portanto, um fenômeno meramente individual que encontre resposta adequada através
da prática médica, jurídica, policial ou religiosa. As posturas moralista, legal, científica ou
religiosa até hoje não conseguiram resultados satisfatórios e nem nunca conseguirão, pois as
formas de drogadição são múltiplas e suas raízes estão presas às próprias necessidades
humanas dentro da paisagem social.
Não são, as fórmulas “práticas”, os métodos “miraculosos” ou as idéias ou processos
“geniais”, capazes de responder ao fenômeno social da drogadição. A necessidade
insubstituível do homem de fugir, de vez em quando, da realidade que o cerca, é tão
importante quanto o ar que respira ou a água que bebe. Essa necessidade o diferencia da
máquina e dos objetos sem vida. É ela que mantém a possibilidade de equilibrar a relação do
concreto com o abstrato em harmonia. O abstrato e o concreto da existência humana precisam
de canais expressivos e consolidadores das duas partes, que na verdade são um “todo” que
harmoniza a vida mental e estimula os comportamentos ativos.
Ao longo da história da cultura humana esses dois componentes estão presentes e se
projetam invariavelmente sob as diferentes formas de conviver. Nas culturas primitivas essa
interligação continua ricamente presente nos ritos, mitos e tarefas do grupo, intrincando-se
nas relações, onde é impossível separar o mágico do real.
A desintegração da cultura na sociedade branca (perda cultural), conseguiu produzir o
magnata e o mendigo, a virgem e a prostituta, o atleta e o subnutrido, o intelectual e o
analfabeto, o abstêmio e o drogado. O uso adequado do tóxico numa sociedade equilibrada é
tão necessário quanto o vinho é necessário à missa. O combate ao tóxico é tão ilusório quanto
combater as miragens no deserto. A sociedade atual necessita reaprender a conviver com as
drogas, pois elas nunca irão desaparecer, como elementos da natureza que são.
Lembrando da expressão que diz: “a religião é o ópio do povo”, da mesma forma
poderíamos dizer: “a droga é necessária para os ritos e crenças de uma sociedade
culturalmente equilibrada”. Entre nós, os civilizados, parece que a ganância, o egoísmo e a
desconfiança são o ópio que nubla a consciência da sociedade dando-lhe a sensação de
progresso e desenvolvimento.
Pior que a drogadição são: fome e guerras, resultados do caos social. Somos obrigados
a rever a ordem social, suas instituições, valores e costumes. Estamos diante de um dilema: ou
mudamos ou continuamos o caminho para a autodestruição.
Concluindo, retornamos para a questão da perda cultural e da perda da identidade pessoal, que
talvez sejam o eixo único a ser repensado no caminho para o reequilíbrio das pessoas e das
sociedades. Se não for assim, os consultórios e clínicas continuarão recebendo vários tipos de
drogados: drogados em álcool, em trabalho, em religião, em dinheiro, ou seja, pessoas que
descarregam suas tensões reativas em substâncias, objetos ou atividades
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